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Uma tarde com Ariano Suassuna

O escritor paraibano, radicado no Recife, Ariano Suassuna

por Fernanda Garrafiel e Glaucia Lewicki

   Quando chegamos, em uma tarde ensolarada, na rua do Chacon, estávamos nervosas e emocionadas. Havíamos esperado mais de um mês pela oportunidade de entrevistar um dos ícones da nossa cultura e estávamos munidas de máquina fotográfica, gravador, lista de perguntas e tudo que parecia necessário para uma boa entrevista. O genro de Ariano nos abriu a porta; o autor estava terminando uma filmagem iria nos atender em seguida. Ariano Suassuna estava sentado em uma cadeira no jardim, em frente a uma câmera, e acenou de longe, muito simpático. Entramos na sala austera, com diversas cadeiras de madeira escura, ornada com esculturas e pinturas de artistas locais. Escolhemos um banco com três lugares para sentar e espalhamos nossa parafernália jornalística. Logo entrou na sala Ariano, nos cumprimentando efusivamente e se acomodando em uma cadeira de balanço próxima. Ariano falou durante uma hora, nos encantando a cada pergunta. Balançando na cadeira, projetava seu corpo para frente quando o assunto o instigava. Com eloquência e paixão defendeu seus pontos de vista, falou um pouco da sua vida e de sua obra. Ariano nos deixou à vontade e com vontade de passar a tarde toda conversando. E aqui está um pouco do que foi falado em nosso bate-papo informal, com idéias marcantes e frases de efeito, fruto de uma tarde inesquecível.

LITERATURA

Ainda é cedo para definir os novos clássicos da literatura.
Mas, no caso de Guimarães Rosa existe uma
presunção de imortalidade e de universalidade.

O senhor sempre cita vários clássicos da literatura nacional e estrangeira que o acompanharam ao longo da vida. Quais seriam os novos clássicos?

Eu acho que é ainda cedo para definir os novos clássicos. É uma tolice e uma infantilidade se auto-denominar um clássico, como eu vi alguns escritores fazendo. Mas, para citar um, no caso de Guimarães Rosa existe uma presunção de imortalidade e de universalidade. A obra dele provavelmente vai atingir várias épocas e o mundo inteiro, como Dom Quixote.

Mas existe excelente literatura nacional e estrangeira contemporânea...

Sim, mas não podemos chamar nenhum escritor vivo de clássico. E também nenhum escritor recente que já tenha morrido. Acho que, na literatura brasileira, vão ficar a prosa de Guimarães Rosa, a poesia de Drummond, a poesia de João Cabral de Melo Neto. Mas é cedo para falar disso. Um verdadeiro clássico para mim é Euclides da Cunha. Já se passaram 100 anos da publicação de Os Sertões e o que tinha que envelhecer na obra já envelheceu.

Uma das obras brasileiras mais premiadas no Brasil e no exterior é Budapeste, de Chico Buarque, que é um compositor. Como o senhor vê isso?

Eu não conheço a obra de Chico Buarque. Nunca li nenhum livro dele, mas eu admiro muito como músico e compositor. Mas não acho de espantar que ele, como compositor, tenha escrito um livro bom. Nós temos na literatura brasileira mais de um mestre cuja formação não é em Letras. Só de médicos, vou citar 3 de primeira ordem: Pedro Nava, extraordinário memorialista, Jorge Lima, grande poeta e João Guimarães Rosa, grande romancista. E olhe que a medicina não tem nada a ver com literatura!

FESTA LITERÁRIA DE PARATY

O assédio dá trabalho, mas se a alternativa for
a indiferença ou a hostilidade, eu prefiro o carinho trabalhoso.

O senhor foi uma das presenças mais aguardadas da última FLIP. Valeu a viagem?

Valeu. De um modo geral eu não gosto de viajar e eu sei que há alguma coisa de equívoco em todas essas reuniões. Existe um embaralhamento de valores muito grande, mas, de qualquer maneira, valeu, nem que tenha sido pelo protesto que eu apresentei sobre Dom Quixote. (o autor fez um protesto durante sua palestra, porque um escritor, em um artigo de jornal, chamou o personagem Dom Quixote de vaidoso e egoísta)

E o que o senhor considera o equívoco da FLIP?

Nestes eventos, as pessoas misturam o interesse na literatura pelo que existe de mundano na vida literária. Os escritores vão ser olhados por coisas que não são exatamente a sua literatura. Por exemplo, eu não acho que o escritor deva ser examinado pelo lado do sucesso ou não-sucesso. Eu faço sempre uma distinção entre sucesso e êxito. Nenhum escritor verdadeiro busca o sucesso e, sim, o êxito. Os Sertões de Euclides da Cunha é um livro que constitui um êxito. Mas qualquer astro da televisão tem mais sucesso que Euclides da Cunha. Pela própria definição, sucesso é uma coisa efêmera.

Dentro dessa definição, o Auto da Compadecida é um êxito e um sucesso?

Ainda é cedo para saber se foi um êxito, porque só se pode dizer que os clássicos são êxitos. Um êxito pressupõe durabilidade e permanência. Mas a Globo fez da obra um sucesso. Eu não tenho muitos sucessos, sou um escritor de poucos livros e de poucos leitores. A exceção é o Auto da Compadecida, que fez sucesso no cinema e na televisão.

Como o Auto da Compadecida mudou a receptividade do público à sua obra?

A receptividade aumentou muito. Se não na parte literária, aumentou muito na parte mundana da literatura. Antes as pessoas me viam passar na rua e não sabiam que eu era o autor do Auto da Compadecida. Agora sabem.

Isso foi bom?

Por um lado é bom. O assédio dá trabalho, mas se a alternativa for a indiferença ou a hostilidade, eu prefiro o carinho trabalhoso.

O NOVO LIVRO

Neste livro eu pretendo juntar a minha discussão,
a minha poesia e os meus diálogos.

O término do seu novo romance estava previsto para o dia 7 de outubro. O ponto final foi colocado?

Não, não foi possível. Entre 7 de julho e 7 de outubro eu fiz 12 viagens. Para quem não gosta de viajar é um desconcerto. Foi Paraty, São Paulo, Salvador, Belém, Petrolina, Rio de Janeiro...

De que fala o novo livro?

O narrador principal é um encenador, que tem um pai adotivo e três irmãos, um poeta, um romancista, um trovador. Este personagem principal tem o sonho de ser escritor, mas é rejeitado pelo pai. Ele então organiza um simpósio sobre a obra dos outros três irmãos. Através deste simpósio eu pretendo juntar a minha discussão, a minha poesia e os meus diálogos.

BRASIL REAL X BRASIL OFICIAL

Os pensadores que Euclides da Cunha cita são péssimos, o que prova
o grande escritor que ele era. Não é pela filosofia, pelo pensamento,
pela ciência, que a obra dele sobreviveu.
É pelo trabalho do grande artista que ele foi.

Fale um pouco da distinção entre o Brasil Real e o Brasil Oficial.

Esta distinção foi feita por Machado de Assis em 1870, em um artigo para um jornal. O país Real é bom, e reserva os melhores instintos. O país oficial é caricato e burlesco. Se ele vivesse hoje, ele veria que a distinção continua a mesma. O país real continua bom e o país oficial piorou. No século 19, o Brasil queria imitar a França, que pelo menos é um país latino. Agora, somos caricatamente americanizados. Eu acho essa distinção fundamental. Os dois maiores escritores brasileiros do século XIX são Machado de Assis e Euclides da Cunha e é a partir da obra dos dois que temos que refletir sobre o Brasil. Euclides da Cunha, tinha uma visão mecanicista e positivista da história, herdada da da falsa ciência social européia do século XIX. Isso foi o que envelheceu da obra de Euclides da Cunha. Os pensadores que ele cita são péssimos, o que prova o grande escritor que ele era. Não é pela filosofia, pelo pensamento, pela ciência, que o livro dele sobreviveu. É pelo trabalho do grande artista que ele foi. A linguagem que muitos têm como áspera é a única linguagem capaz de reerguer aquele mundo que ele queria reconstruir, numa obra que tornasse esse universo acessível a outras pessoas. A única linguagem capaz de recontar do ponto de vista do país real o episódio de Canudos. Em Canudos tentou-se reconstruir uma comunidade baseada nos valores do Brasil Real. O próprio Antonio Conselheiro era um profeta saído do Brasil Real. E Euclides da Cunha saiu do Brasil oficial e foi tentar entender o Brasil Real. Euclides da cunha diz: Nós brasileiros nos aliamos pela nossa terra, deslumbrados pelas miragens de uma civilização de empréstimo, que nós recebemos embaladas por dentro dos transatlânticos – imagine se ele conhecesse a América hoje, com a internet – e que nos acotovela na rua do Ouvidor. Nós nos aliamos deixando de lado e desprezando o sertão onde se desata a base verdadeira da nossa nacionalidade. Ele criou dois emblemas: o da rua do Ouvidor, que tinha a imagem falsificada e falsificadora do país oficial e o emblema do sertão onde estava o país real, a rocha vida da civilização brasileira. Aí aconteceu um fato curioso: Euclides trabalhava em um jornal em São Paulo e foi convidado a fazer uma matéria jornalística sobre a situação em Canudos. Ele saiu do lado da república positivista e capitalista, como um cruzado da república para acabar com o que ele considerava os últimos vestígios da barbaridade sertaneja. Quando chegou lá, ele que tinha o caráter de um homem de bem, simpatizou com a causa deles. Quando ele viu o crime que a república estava cometendo contra os sertanejos, mudou de lado e abandonou a república. Mas a conversão foi recente demais. Ele ficou perturbado e achou que a única parcela do Brasil Real que existia era o sertanejo e ignorou a humanidade das favelas. Ele considerou todo o Brasil urbano como sendo oficial.. E eu, influenciado por Euclides da Cunha passei muito tempo pensando desse jeito.. Como eu sou um sertanejo, eu não enxergava que na cidade, quando a polícia cerca uma favela, é o povo do Brasil Oficial cercando o Brasil Real, cercando aqueles arraiais de Canudos. Este Brasil Real urbano também tem que ser levado em conta quando se faz esta distinção. Euclides da Cunha não levou, infelizmente. Mas é muito fácil hoje, eu, colocar os óculos dele e enxergar mais longe.

E o Lula? O presidente passou do Brasil Real para o Oficial?

Nem em uma revolução se pode deixar de fazer concessões. E a esquerda não está no poder, está no governo.

(© Café Literário/JB Online-Especial Ariano Suassuna)


A cruzada pela cultura brasileira

   Ariano Suassuna nasceu em 16 de junho de 1927, em Nossa Senhora das Neves, atual João Pessoa. Filho do governador, Ariano foi festejado, pois era dia de Corpus Christi e uma procissão parou em frente ao Palácio do Governo para receber o anúncio de seu nascimento. Mas, com 3 anos de idade, precisou passar por sua primeira prova de fogo, que marcaria sua vida e sua obra: seu pai, João Suassuna, foi assassinado por motivos políticos durante a revolução de 30. A família, agora comandada por Cássia Suassuna, após diversas mudanças se fixou em Taperoá, onde Ariano começou a sua formação cultural, tendo contato com peças de teatro regionais e desafios de viola.

   A estréia literária de Ariano se deu em 7 de outubro de 1945, quando o poema Noturno, de sua autoria, foi publicado com destaque no Jornal do Commercio do Recife, onde estava estudando para cursar a Faculdade de Direito.

   E Ariano cursou e se formou em Direito. Mas foi durante a faculdade que sua vocação artística e literária se firmou. Juntamente com Herminio Borba Filho e outros intelectuais pernambucanos, formou um grupo que fundou o Teatro do Estudante de Pernambuco, para levar o teatro ao povo e criar uma literatura com raízes na realidade brasileira.

   E restou alguma coisa do Ariano advogado? "Não sobrou nada. Fui trabalhar como advogado porque não tinha emprego. Eu já estava namorando com Zélia, queria me casar e um dos maiores advogados do Recife me chamou para trabalhar. Eu trabalhei com ele mas logo me demiti, porque não tinha vocação." - diz o próprio Ariano.

   Zélia, que fez Ariano arriscar alguns passos na advocacia, seria sua futura mulher, e a responsável por uma mudança na literatura de Ariano: antes dramática, agora abre espaço para o riso e a ironia. O primeiro encontro com Zélia é lembrado com carinho por Ariano: "O encontro com a minha mulher, foi um acontecimento muito especial. Eu guardo as datas mais importantes ligadas a ela. A primeira frase que eu disse à Zélia foi uma frase corriqueira, mas, pelo fato de ter sido dirigida para ela, eu dei importância literária e poética, colocando-a em um romance. Em 1956, escrevi A História do Amor de Fernando e Isaura, baseado na história de Tristão e Isolda, porque eu queria pegar uma história de amor desafortunada. O romance é a versão brasileira de Tristão e Isolda. A primeira frase que Fernando diz a Isaura é a primeira frase que eu disse a Zélia. Eu conheci Zélia andando na rua. Cheguei em casa dizendo que tinha visto uma moça muito bonita e que ela tinha me dado importância. Minha irmã não acreditou, dizendo uma moça bonita não ia me dar importância. Alguns dias depois ela confirmou que era verdade: - Para minha surpresa, o que você me disse é verdade, porque a moça que você viu é irmã de uma colega de trabalho minha, e ela me confirmou. Então eu já sabia que Zélia me conhecia. Por isso, a primeira vez que vi Zélia na rua eu disse a ela: Você se importa de me conhecer sem ter ninguém para nos apresentar? Ela disse que não se incomodava. Alguns dias depois ela me convidou para ir a uma festa. Esta festa foi no dia 20 de agosto de 1947 e foi aí que eu comecei a namorar com ela. Dia 6 de janeiro de 1948, dia de reis, eu pedi Zélia em casamento e ela concordou. A partir daí, eu passei a escolher as datas e a celebrar. Eu comecei a escrever a “Pedra do Reino” no dia do aniversário da Zélia, porque eu queria que ela trouxesse a sua benéfica influência."

   Em homenagem a Zélia, Ariano escreveu sua primeira peça cômica: Tortura de um coração ou em boca fechada não entra mosquito, que foi dirigida por ele e teve a participação de mamulengos. Depois, ao longo de sua carreira, Ariano escreveu diversas peças e ganhou muitos prêmios. Sua obra mais conhecida, O Auto da Compadecida, foi considerada o texto mais popular do teatro brasileiro, transformada em série de televisão e longa-metragem para o cinema.

   Foi professor de Estética da Universidade Federal do Pernambuco, onde teve alguns alunos muito ligados a ele. Entre eles, Jarbas Maciel, que foi seu companheiro no Movimento Armorial e Carlos Newton Júnior, que é hoje o maior especialista no seu trabalho de escritor, tendo se tornado professor.

   Em literatura, Ariano publicou A história do Amor de Fernando e Isaura em 1956. Em 1958, começou as anotações para o Romance d'A Pedra do Reino, que iria concluir em 9 de outubro de 1970, data do quadragésimo aniversário da morte de seu pai. Pela Universidade Federal de Pernambuco, publicou em 1975 Iniciação à Estética, obra básica para o entendimento do pensamento do autor.

   Ligado diretamente à cultura, iniciou, também em 1970, o “Movimento Armorial”, interessado no desenvolvimento e no conhecimento das formas de expressão populares tradicionais. O movimento foi lançado no Recife, em 18 de outubro de 1970, com o concerto Três Séculos de Música Nordestina – do Barroco ao Armorial e com uma exposição de gravura, pintura e escultura.

   Em 1995, Ariano deixou sua marca na política, sendo nomeado Secretário de Cultura do Estado de Pernambuco, no Governo Miguel Arraes (1994-1998). Revolucionário, criou um sistema de desenvolvimento cultural através de aulas-espetáculo, viajando para várias áreas do país, falando sobre os aspectos da cultura brasileira.

   Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal de Pernambuco, imortal da academia Brasileira de Letras, ocupante da cadeira 35 da Academia Paraibana de Letras, Ariano Suassuna é um dos grandes nomes do nosso panteão de intelectuais. E, mesmo não exercendo a advocacia propriamente dita, é um dos maiores defensores da preservação da cultura popular, da verdadeira verve do povo brasileiro.

(© Café Literário/JB Online-Especial Ariano Suassuna)


O Ciclo Ariano

por Glaucia Lewicki

O Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta
Editora José Olympio
Ariano Suassuna

   Era uma vez, em um reino muito distante, um rei. Ao morrer, em circunstâncias misteriosas, nunca bem esclarecidas, cresceu a lenda de que ele retornaria para retomar o trono e salvar seu povo da fome, da miséria e da dominação. Tal descrição aplica-se com perfeição ao Rei Arthur, dono de um dos mais ricos conjuntos de romances, contos e lendas da literatura universal, conhecido como Ciclo Arturiano.

   O que muita gente não se lembra, é que há uma espécie de Rei Arthur em Portugal, baseado na figura de um rei de carne e osso, desaparecido na batalha de Alcácer-Quibir, em 1578.

   Seu nome era Dom Sebastião e seu desaparecimento foi um prato cheio para aumentar a melancolia do povo que inventou a saudade. Primeiro, porque com ele desapareceu a dinastia fundadora do reino português, tendo a sua morte sem herdeiros determinado o fim da Casa de Avis. Depois, porque essa mesma falta de herdeiros foi responsável pela Unificação Ibérica, e a submissão do reino português aos desígnios do espanhol Filipe II.

   Rei que morre sem deixar corpo é rei temporariamente desaparecido, nunca morto. E a volta do rei foi ardentemente esperada. O povo português podia sofrer nas mãos dos espanhóis, mas Dom Sebastião retornaria para resgatá-lo. E o povo esperou pela volta do rei. Esperou. Esperou. Veio a Restauração, em 1640. Portugal tornou-se, novamente, um reino independente, sem que Dom Sebastião tivesse dado as caras. Mas, para quem prefere a espera à ação, sempre há misérias a aguardar por um salvador mítico. A questão não era mais a volta corpórea de Sebastião, que tornou-se símbolo de uma volta triunfal, de um regresso à glória, do ingresso à fartura e às benesses. E um rei, cujo único ato digno de nota foi morrer, passou à história; não mais como um monarca, mas como símbolo de esperança. Deixou de ser Sebastião para virar sebastianismo. E seu túmulo na Capela de Santa Maria, junto ao Mosteiro dos Jerônimos, vazio de corpo, mas repleto de expectativas da alma portuguesa, ainda aguarda por ele.

   Como tantas outras tradições e lendas ibéricas, essa também atravessou o Atlântico. E os brasileiros passaram a também aguardar pela mítica e redentora visita de Sebastião. Literalmente.

   Em 1835, Pedra Bonita, uma curiosa formação rochosa do sertão nordestino, foi lavada com o sangue de homens, mulheres e crianças. Sob pregação de um desses Antônios Conselheiros que, volta e meia surgem na história, sacrifícios humanos foram feitos para que Dom Sebastião retornasse do seu desaparecimento encantado.

   Assim como Canudos rendeu à literatura brasileira Os Sertões, os fatos de Pedra Bonita renderam alguns dos melhores momentos da literatura brasileira. Em 1938, José Lins do Rego escreveu Pedra Bonita, um de seus belos romances. Araripe Júnior, em 1974, lançou O Reino Encantado. E, em 1971, Ariano Suassuna lançou o que viria a ser considerado sua obra-prima: O Romance da Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta.

   Ao narrar a história de um rei que nunca morre, Ariano Suassuna lavou a alma, uma vez que perdeu seu próprio pai, assassinado por motivos políticos, quando o autor tinha apenas três anos de idade. O resultado da ressurreição pessoal e, ao mesmo tempo, universal, do rei mítico que há na vida de todos nós, pode ser conferido pelas novas gerações, após vinte anos fora de catálogo, em uma nova e cuidadíssima edição da José Olympio. Ariano se diz escritor de poucos leitores. Mas o fato é que a primeira impressão dessa nova edição já se esgotou.

   Além disso, o livro de Suassuna é lembrado durante a Cavalgada da Pedra do Reino, que acontece, todos os anos, no local em que os homens, mulheres e crianças foram sacrificados pela volta do rei. Há uma espécie de festival em São José de Belmonte, a cidade que é o cenário do romance. Desde 1993, o evento é promovido pela Associação Cultural da Pedra do Reino, com sede naquele município. A programação conta com apresentações de grupos de dança, bandas de pífanos e forró, palestras e lançamentos de livros. O mais importante, porém, é a Cavalhada, na tarde de sábado, e a Cavalgada, na manhã de domingo.

   A famosa Cavalgada da Pedra do Reino reúne cavaleiros de vários Estados do Nordeste e do resto do Brasil, além de moradores da região, turistas, pesquisadores da cultura popular e jornalistas. Sempre que possível, o escritor comparece ao evento, onde recebe homenagens e participa dos debates. É um ciclo, onde a história vira lenda e vice-versa.

   Leitor, perpetuador e “reinventor” de contos, canções, poemas e lendas ibéricas, que em suas mãos ganham releituras e feições genuinamente brasileiras, Ariano Suassuna vê, dia após dia, ser criada uma lenda em torno de si e de seus escritos. Nosso Mago Merlin das letras é o arquiteto de um reino lendário, e o articulador do que, quem sabe, um dia, fique conhecido em nossa história literária como o Ciclo Ariano. Sua modéstia, sincera, negaria essa afirmação com um sorriso de quem sabe que a imortalidade literária só é concedida àqueles que são absolvidos pelo Tempo, que costuma dar sentenças muito severas. Mas o Brasil só teria a ganhar, e muito, com a eterna perpetuação das obras de Ariano Suassuna em sua alma e em sua história.

(© Café Literário/JB Online-Especial Ariano Suassuna)

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