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Cangaço revisitado

Expedita Ferreira (sentada) e sua filha Vera

Suzana Velasco

   Aos 13 anos, Vera Ferreira viajou com a mãe, de Aracaju a São Paulo, para o lançamento de um livro sobre as táticas de guerra dos cangaceiros, de Cristina Matta Machado. Acostumada a ouvir xingamentos sobre sua família, ela percebeu a reverência dos cangaceiros reunidos pela escritora e decidiu que a partir de então pesquisaria sobre a história de seus avós. A declaração da menina, registrada na época num jornal, está guardada por ela até hoje, 37 anos depois. Vera é neta de Virgulino Ferreira, o Lampião, e Maria Bonita, os dois personagens mais famosos da história do cangaço no Brasil. Dedicando a vida a recuperar uma memória que ficou marcada pelo mito de um bandido sangüinário, Vera cumpriu à risca a promessa de menina, largando empregos para investir no projeto, ainda não realizado, de construir um memorial do cangaço. E acabou fazendo com que a mãe, Expedita Ferreira, olhasse para sua própria história com outros olhos.

   Expedita conta que isolou os filhos, rejeitados na escola e entre os vizinhos por causa do parentesco com Lampião. Depois de passar mais de 30 anos sem querer saber de sua história, Expedita viu, a partir do lançamento do livro, a possibilidade de viver sem um olhar preconceituoso. Três décadas depois, ela ajudou a filha, Vera a recontar essa história para a equipe da peça “Lampião e Maria Bonita”, que estréia hoje no Centro Cultural Banco do Brasil, às 19h.

   — Só conhecia meu pai como ladrão e estuprador — disse ela, antes de avisar que não gosta de falar sobre a família e em seguida contar sua vida com naturalidade. — A Cristina me ensinou o lado bom do meu pai. Desde então comecei a gostar de ter contato com essa história — contou Expedita, que acompanha a peça desde sua primeira apresentação em Salvador, em 2003, e agora está no Rio para assistir à estréia carioca.

   Em “Lampião e Maria Bonita”, o autor Marcos Barbosa criou um diálogo do casal em suas últimas horas de vida, passadas na Grota do Angico, em Sergipe, em 1938. Depois da pesquisa bibliográfica, Marcos foi conhecer o local com a diretora, Elisa Mendes, o casal de atores, Widoto Áquila e Fafá Menezes, e a produtora, Virgínia Da Rin. Nessa viagem, acompanhada de Vera e Expedita, a equipe teve contato com objetos de Lampião e Maria Bonita e pôde acrescentar à peça detalhes como a roupa em tons de azul, que, segundo Vera, foi a cor do uniforme utilizado por Lampião a partir de 1926, quando recebeu de padre Cícero uma patente de capitão para enfrentar a Coluna Prestes.

“Não queríamos fazer um veredicto de Lampião”

   — A maior parte dos textos, filmes e programas sobre o cangaço não tem qualquer rigor histórico. Quando li a peça, percebi que o trabalho era sério — contou Vera, vestindo uma camiseta com a frase “Lampião, rei do cangaço”. — Em geral as abordagens são preconceituosas. Há o mito do homem violento, que não deixava que a mulher engravidasse no cangaço mas deixava que pegasse em armas. Isso tudo é mentira. A única mulher que pegou em armas foi Dadá e minha mãe nasceu no cangaço.

   Expedita nasceu em Porto da Folha, no interior de Sergipe, e viveu apenas 21 dias com os pais, sendo dada a um casal com 11 filhos. Aos oito anos, um juiz de menores a levou para a Bahia, onde foi encontrada pelo tio João Ferreira, o único da família de Lampião que não entrou para o cangaço. Aos 18 anos, casou-se em Aracaju e hoje tem quatro filhos e três netas.

   — Meus pais de criação nunca esconderam que eu tinha pais verdadeiros. Quando era criança, costumava ouvir frases como “raça de Lampião não presta”, mas, como ninguém me contava nada, eu também não perguntava. E criei meus filhos dentro de casa, para não serem agredidos.

   Foi essa marca, de que a raça de Lampião não presta, que diretora e autor procuraram retirar da peça, sem querer, por outro lado, transformar os cangaceiros em heróis. Segundo Marcos, o objetivo foi humanizar os personagens, através da intimidade do casal.

   — Não queríamos fazer um veredicto de Lampião. Não dá pra deixar de falar sobre a questão política, mas ela aparece mediada pela intimidade dos dois. Ir ao local onde eles morreram, ter o contato físico com a região, com a água do Rio São Francisco, foi relevante para ter uma relação afetiva com a história.

   Essa afetividade é o objetivo de Vera em seu sonhado memorial, que seria não só um museu, mas uma ambientação da Grota do Angico. Apesar de não levar muita fé na concretização do sonho da filha, Expedita sabe que ela não vai sossegar até tentar de tudo. Com a mesma convicção dos 13 anos de idade.

(© O Globo Online)


A sina do cangaço

Há mais de dois anos rodando o país, a peça 'Lampião e Maria Bonita' estréia no Rio

Rachel Almeida

Rafael Andrade    

Fafá Menezes e Widoto Áquila (acima), são os protagonistas. Espetáculo estreou em Salvador e passou por 36 cidades

 Fafá Menezes e Widoto Áquila (acima), são os protagonistas. Espetáculo estreou em Salvador e passou por 36 cidades

   São controversas as histórias que envolvem Virgolino Ferreira, o renomado Lampião, em suas duas décadas de cangaço no sertão nordestino. Na bibliografia sobre o assunto, a equipe do espetáculo Lampião e Maria Bonita, que estréia para convidados hoje, no Centro Cultural Banco do Brasil, no Centro, encontrou muita divergência - inclusive o próprio nome do herói-vilão da história brasileira, que é chamado ora de Virgulino ora de Virgolino (a família garante que é essa a grafia correta).

   Por isso, a trupe - formada pelo dramaturgo cearense Marcos Barbosa e pelos soteropolitanos Elisa Mendes (diretora), Fafá Menezes e Widoto Áquila (atores) - se lançou numa extensa pesquisa sobre o lendário personagem e sua companheira, Maria Bonita, que incluiu o contato com Expedita e Vera Ferreira, filha e neta do casal.

   - Além de lermos os textos escritos pela Vera, tivemos acesso a fotos, objetos da família e até a um traje de cangaceiro - conta Marcos.

   Há mais de dois anos em cartaz e visto por cerca de 30 mil pessoas em 36 cidades brasileiras, o espetáculo, que estreou em Salvador e vem ao Rio pela primeira vez, nasceu de uma iniciativa da diretora Elisa Mendes, que acredita que o movimento cangaceiro ainda não é estudado da forma como deveria.

   - O nome do Lampião é bem conhecido no Brasil, mas não a sua história com detalhes. No 2º Grau, por exemplo, o tema não é matéria obrigatória. Falar do cangaço no Brasil é uma forma de pensar na atualidade, pois envolve assuntos delicados como corrupção e poderes paralelos - opina Elisa.

   O dramaturgo Marcos Barbosa concorda:

   - O cangaço é uma forma de banditismo que se instala quando o Estado não cumpre sua missão de ordem e justiça. E assim nascem os poderes paralelos, grupos assumem essa função com a coação das armas.

   O espetáculo, livre de louvores e condenações dos personagens, se passa na última hora de vida de Lampião e Maria Bonita, antes do ataque feito pelas volantes (unidades móveis da polícia) à Grota do Angico, na fronteira entre Sergipe e Alagoas, em 28 de julho de 1938, que resultou na morte do casal e de outros 11 cangaceiros.

   - Construí um diálogo fictício entre o casal que se passa na madrugada em que eles foram mortos. Como isso, passei a limpo os momentos marcantes da história do cangaço - comenta Marcos.

   Premiado nos festivais de São José dos Campos (SP) e de Guaramiranga (CE) e contemplado com o prêmio Funarte da Caravana Nacional de Circulação, o espetáculo foi construído a partir de expressões típicas do universo nordestino.

   - Como sou cearense, utilizei expressões do Cariri, cidade do interior do Ceará, com as quais já estava bem habituado. Mas também busquei fazer uma mistura com expressões de outros lugares, já que Lampião e seu grupo percorreram sete estados nordestinos. A linguagem do bando era uma mescla de expressões de todos esses estados. Fora isso, me inspirei na literatura de Jorge Amado e Guimarães Rosa, por exemplo - explica o autor.

   Entre os aspectos curiosos da montagem está o figurino dos protagonistas, em que sobressai um tom azul acinzentado. Diferentemente do que imagina a cultura popular, o azul era a cor utilizada no cangaço, e não o marrom, como comprovaram as fotografias pesquisadas pela equipe. O cenário, de Zuarte Júnior, utiliza peles secas de boi.

   - A enorme quantidade de couro de boi dá uma idéia da sina dos cangaceiros, que carregavam um monte de morte nas costas. Ainda mais para Zuarte, que é vegetariano.... - observa Elisa.

(© JB Online)

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