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Água viva

11/06/2008

Ana Carolina Fernandes/Folha Imagem

A cantora na sede da gravadora Biscoito Fino, no Rio de Janeiro


Maria Bethânia homenageia oceanos e rios nos novos discos "Mar de Sophia" e "Pirata", em que procura "oásis na memória" para contrapor ao mundo "feio" atual; álbuns têm louvações a orixás e músicas do irmão Caetano

LUIZ FERNANDO VIANNA
DA SUCURSAL DO RIO

Maria Bethânia tinha três ou quatro anos quando conheceu o mar de Salvador com sua mãe, dona Canô. Primeiro, o bonde puxado a burro até o porto de Santo Amaro da Purificação.

Depois, o vapor sacudido a valer pelas águas do Atlântico.

"Fiquei impressionada com a cor, as ondas. Minha mãe passando mal, o cheiro de óleo, e eu me lembro de sentir uma coisa muito grande, medo junto de prazer. Gosto da sensação de estar em cima da água. Fico um pouco inatingível", conta ela.

Quando fala dos rios de sua terra, também remonta ao passado. No Subaé, de navegação, e no Sergimirim, córrego cheio de pedras, ela nadava na infância com Caetano Veloso e os outros irmãos. "Mataram os dois rios [com a poluição]. A memória que tenho é de quando eram vivos e eu era menina. Eles se encontravam, "um amor de águas limpas'", diz, citando "Memória das Águas" (Roberto Mendes/Jorge Portugal).

Oceanos e rios são os temas, respectivamente, de "Mar de Sophia" e "Pirata", CDs que chegam às lojas na próxima semana -vendidos separadamente. Na sexta-feira da próxima semana, a cantora estréia o show "Dentro do Mar Tem Rio" no Tom Brasil Nações Unidas, em São Paulo.

Águas doces e salgadas

Os novos títulos prosseguem o mergulho em águas passadas que a cantora já dera em "Brasileirinho" e "Cânticos, Preces e Súplicas à Senhora dos Jardins do Céu" (ambos de 2003). Tem sido sua marca desde que trocou as grandes gravadoras pela Biscoito Fino, na qual tem o selo Quitanda. "Como acho que [o mundo] está muito feio hoje, fico procurando alguns oásis na memória. Imaginando, emanando para ver se cola", explica.

Entusiasmada com os poemas da portuguesa Sophia de Mello Breyner (1919-2004), cuja obra lhe foi apresentada há cinco anos pelo escritor (também português) António Alçada Batista, Bethânia planejou primeiro "Mar de Sophia". Logo pensou em um CD para águas doces e outro só para a Baía de Todos os Santos -que chama pelo nome original, Kirimurê, título de uma música de seu irmão Jota Velloso.

"Mas, quando fiz o "Mar", já senti o Kirimurê ali. E, quando fiz o "Pirata", acabei de pôr os caboclos e as coisas da minha região. Foi um veio que não precisou alargar mais", conta.

As águas do Recôncavo Baiano, "de fundo de baía, meio mangue, cor de palha", continuam sendo as preferidas de Bethânia, que aproveita as cachoeiras da região quando está lá. "Enquanto tem, né?", lamenta. Foi por esse rastro de destruição que ela incluiu "Os Argonautas", música de Caetano que remete às grandes navegações ("Navegar é preciso/ Viver não é preciso"), no CD de águas doces, não no de águas salgadas, como seria lógico.

"Como os rios estão mortos, achei que a dramaticidade da letra deixaria mais nítido o que eu queria falar no "Pirata". É um barco imaginário que foi parar em Santo Amaro", diz.

A canção de Caetano que está em "Mar de Sophia" é "Marinheiro Só", que faz par com "O Marujo Português" (Linhares Barbosa/Arthur Ribeiro). "Enquanto o samba-de-roda tem o suingue, o fado é empolado. Acho bonitas essas diferenças, duas visões do mesmo ofício."

"Pirata" é costurado por trechos de Guimarães Rosa ("Ele já me conduz há tempo e para sempre há de me conduzir", diz Bethânia) e tem uma inevitável homenagem ao São Francisco. "É o rio santo, que comove romeiros, poetas, cantores e escritores, tal sua força e sua beleza", exalta ela, que escolheu trabalhos de bordadeiras da beira do rio para ilustrar o CD.

Comuns nos discos de Bethânia, as louvações a orixás não faltariam nos novos, que têm, entre outros, cantos a Oxum e Iemanjá, divindades das águas. "Vou nas festas de Iemanjá e de Nossa Senhora da Purificação. Meu berço é católico, mas há o outro, que eu escolhi adulta. Não tem briga", concilia.

Há líquidos diversos nos CDs, entre eles "Lágrima" (Roque Ferreira) e a "água do ventre", como a cantora se refere a "Debaixo d'Água", que Arnaldo Antunes lhe ofereceu juntamente de "Agora", do repertório dos Titãs. "Aqui é reservatório", aponta para a barriga.

"Mundo mau"

Desencantada com um "mundo mau, mentiroso, enganador", Bethânia prefere não dizer se votou ou não em Lula, pois já não acredita em grandes mudanças a partir da política. Sua queixa é internacional.

"É uma afronta quem manda mesmo no mundo, que é o presidente norte-americano, não assinar o Protocolo de Kyoto [que visa controlar a emissão de gases poluentes]. A gente só pode se aborrecer, porque somos lixo. Os bacanas deveriam dizer: "Você está fora". Façam com ele [George Bush] o que fizeram com Cuba [bloqueio econômico]. Mas não muda, só piora. Daqui a pouco vão liberar para jogarem bomba na Amazônia", diz ela, resumindo seu desencanto: "Quero moda de viola. Pelo menos me comove."

(© Folha de S. Paulo)


crítica

CD impecável tira ouvinte de plano mediano

DA SUCURSAL DO RIO

A abertura de "Mar de Sophia" com a força de "Canto de Oxum" (Toquinho/Vinicius de Moraes), em que Maria Bethânia passa do grave ritualístico para um agudo idem (e raro em sua carreira), já arranca o ouvinte do plano mediano e o lança em algo maior e instável, como o mar. O jogo está ganho, mas ela prossegue num CD impecável.

Os versos de Sophia de Mello Breyner integram o conjunto de rasgos curtos e profundos, como são as citações de Dorival Caymmi: "O Vento", "Cantiga da Noiva" e "Canto de Nanã", que fecha o círculo aberto com o canto inicial.

Em 8 das 15 faixas, a percussão de Naná Vasconcelos é fundamental. Sem o virtuosismo que o torna às vezes maçante, ele reveste o ambiente para a voz de Bethânia navegar.

O peso ancestral fica explícito nas cirandas de domínio público e em duas letras de Paulo César Pinheiro: "Iemanjá Rainha do Mar", com melodia medieval de Pedro Amorim, e "A Dona do Raio e do Vento", reverência a Iansã.

Em outro bom momento, Bethânia emenda "Debaixo d"Água", letra de Arnaldo Antunes sobre os bons tempos do útero, com "Agora", dos Titãs, em eficiente tom rap. As dores de amor emocionam em "Floresta do Amazonas", de Villa-Lobos, "Lágrima", valsa do mestre do samba-de-roda Roque Ferreira, e "As Praias Desertas", de Tom Jobim.

"Pirata", embora também coeso, tem impacto menor em momentos como "Eu que Não Sei Quase Nada do Mar" (Ana Carolina/Jorge Vercilo). Mas há "O Tempo e o Rio" (Edu Lobo/Capinam), beleza recorrente na discografia de Bethânia, e a sofrida "Os Argonautas", de Caetano. Também é dele "Onde Eu Nasci Passa um Rio", aboio que Bethânia não gravara. Agora a música está completa. (LFV)

MAR DE SOPHIA     

PIRATA    
Artista: Maria Bethânia
Gravadora: Biscoito Fino
Quanto: R$ 39 cada, em média

(© Folha de S. Paulo)


Maria Bethânia lança dois CDs simultaneamente

 
Tasso Marcelo/AE
Bethânia relembra as águas de sua terra natal e canta visão feminina sobre o mar
 

Álbuns do projeto temático da cantora singram entre águas de rio e de mar

Lauro Lisboa Garcia

SÃO PAULO - Mais do que outros elementos da natureza, a água sempre teve presença de profundo significado no repertório de Maria Bethânia. Agora, em generosa e caudalosa corrente, o tema desemboca em dois álbuns temáticos, de lançamento simultâneo: Pirata (Quitanda), em que se aprofunda na memória afetiva da terra natal, Santo Amaro da Purificação; e Mar de Sophia (Biscoito Fino), em que singra pela poesia da portuguesa Sophia Mello Breyner em uma visão feminina sobre o mar.

O Estado desta sexta-feira traz reportagem sobre o projeto Dentro do Mar Tem Rio, que abrange dois CDs e o show que estréia no dia 10 em São Paulo. “Agora tenho já um pouquinho de autoridade para transformá-las numa expressão artística de cantora popular”, diz Bethânia sobre a concentração de tantas águas num trabalho só.

Bethânia reuniu canções inéditas e antigas. Dentre os compositores estão Arnaldo Antunes, Caetano Veloso, Dorival Caymmi, Vanessa da Mata, Villa-Lobos, Ana Carolina, Edu Lobo, Vinicius de Moraes, Antonio Carlos Jobim e João de Barro.

Versos de poetas brasileiros e portugueses, como João Cabral de Mello Neto, Guimarães Rosa e Fernando Pessoa, se unem às letras de música.

Novidades sonoras

Entre o doce e o salgado, o azul do mar e o amarelo do rio, Bethânia faz a ponte entre épocas, origens, intenções e sensibilidades. Arregimentou canções inéditas de compositores como Roberto Mendes e Jorge Portugal, autores de uma das melhores canções dos CDs, Memória das Águas, que diz: “Amores são águas doces/ Paixões são águas salgadas/ Queria que a vida fosse/ Essas águas misturadas”.

Mar de Sophia tem trilha rítmica de Naná Vasconcelos. “Quando entrei em estúdio não sabia o que ia fazer porque para fazer o mar nenhum instrumento dava, nenhum casava com meus sentimentos, com a sonoridade que eu queria”. Então veio a colaboração de Naná. “Para mim a grande marca do disco é o trabalho dele”.

A sonoridade dos dois CDs prima pelo despojamento e especialmente em Pirata, retoma a trilha rural de Brasileirinho, pela ênfase no som da viola, que também deve ser destaque do show.

Outra combinação que ressalta aos ouvidos é a de voz com piano, com Bethânia às vezes afinando mais nos agudos. “Voz e piano sempre me comoveu muito, porque o primeiro instrumento pra nós é o piano, em Santo Amaro”, lembra a intérprete.

Consciência ecológica

Mesmo sem falar diretamente sobre a poluição e o desperdício de água, estes são alertas latentes no trabalho de Bethânia. “Não vou dar uma aula. Sou uma cantora popular, mas falando do elemento mais importante, a meu ver, na face da Terra, e que está sendo dizimado, vai acabar”, alerta.

Para Bethânia, versar sobre a água é a oportunidade de falar como “os homens que comandam o mundo” se comportam com superioridade arrogante diante dos elementos da natureza. “Falar da água em dois discos e num show é uma surra. Quem me ouvir vai ter que pensar na água”.

(© Agência Estado)


Ponte entre épocas num navegar preciso

Arregimentou canções inéditas e raras de compositores de plena intimidade

Ouça trechos das faixas Debaixo d'água e Memória das Águas

Entre o doce e o salgado, o azul do mar e o amarelo do rio, numa refinada trama de artesanato artístico, Bethânia faz a ponte entre épocas, origens, intenções e sensibilidades num navegar preciso. Arregimentou diversas canções inéditas ou raras de compositores com os quais goza de plena intimidade, como Roberto Mendes, Edu Lobo, Jorge Portugal e Capinam - autores, em parcerias alternadas das melhores canções de ambos os CDs, como a chula Memória das Águas (Mendes/Portugal), que diz: 'Amores são águas doces/ Paixões são águas salgadas/ Queria que a vida fosse/ Essas águas misturadas'. São memórias não só dela, mas de seus conterrâneos.

Nas canções Sereia de Água Doce (Vanessa da Mata) e Eu Que Não Sei Quase Nada do Mar, de Ana Carolina e Jorge Vercilo (que já toca em algumas rádios) aflora uma boa parcela de sensualidade e até de erotismo, caso da segunda, que diz: 'Tua língua correnteza lambe minhas pernas como faz o mar'.

A sonoridade dos dois CDs prima pelo despojamento e, especialmente em Pirata, retoma a trilha rural de Brasileirinho, pela ênfase no som da viola, que também deve ser destaque do show. Um dos achados do repertório é o samba Águas de Cachoeira, de Jovelina Pérola Negra, Labre e Carlito Cavalcante. Outros são Francisco, Francisco (Roberto Mendes/Capinam), além das oportunas regravações de O Tempo e o Rio (Edu Lobo/Capinam) e Onde Eu Nasci Passa um Rio (Caetano), que ela tinha cantado em parte em seus shows, bem como pérolas raras de Dorival Caymmi.

Outra combinação que ressalta aos ouvidos é a de voz com piano, com Bethânia às vezes explorando mais os agudos. 'Unir voz e piano sempre me comoveu muito, porque o primeiro instrumento pra nós é o piano, em Santo Amaro. O violão chegou muito depois. Era piano e viola de samba, viola caipira. O violão só chegou com João Gilberto', lembra a intérprete, que emana poesia e emoção até debaixo d'água.

(© Agência Estado)


Nas águas de uma grande artista

Maria Bethânia lança dois CDs falando de rios e mares

por Beto Feitosa

Um ambicioso projeto banhado em águas inspiradas. Maria Bethânia lança simultaneamente dois álbuns falando sobre rios e mares. Mar de Sophia traz a água salgada da maturidade de Bethânia, cantora de rigoroso depuro artístico e projetos bem conceituados, fechados em uma idéia. Já Pirata tem um quê de menina, com as lembranças da infância à beira do rio no recôncavo baiano.

Dentro do mar tem um rio: a frase ouvida por Bethânia e levada para a música através de uma poesia de Capinam resume e batiza o ambicioso projeto. Enquanto o país fala em crise da indústria do disco e muitos artistas apelam para um repertório mais fácil e óbvio, Bethânia veste sua coroa de rainha absoluta. O apuro de sua interpretação encontra um conceito fechado e bem definido em um trabalho que vai além do ofício de uma cantora popular.

Com o tempo Bethânia se tornou um artesã da música. Uma artista de atitudes discretas, obras bem delineadas e realizações majestosas. Um disco de Maria Bethânia é bem mais que um punhado de canções; é um painel musical focado em uma idéia, uma pequena jóia lapidada com carinho e esmero. Essa liberdade de criar encontra sua plenitude quando Bethânia sai da grande indústria tradicional para se aliar ao cast da gravadora Biscoito Fino. E vai ao extremo quando a cantora cria o Quitanda, seu próprio selo, voltado especialmente para trabalhos tidos como menos comerciais, mas que rendeu um dos maiores discos e shows da década, Brasileirinho, de 2003.

Admirada por sua habilidade particular de costurar músicas e poesias, Bethânia passeia com desenvoltura entre os textos da poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner e as músicas de grandes compositores brasileiros. O CD Mar de Sophia se rende em homenagens a escritora e suas águas. Entidades africanas se casam com a literatura portuguesa e a música brasileira em uma colcha de retalhos bem amarrados.

Bethânia abre espaço para poesia de Drummond musicada por Sueli Costa. "O mundo é grande e cabe nessa janela sob o mar", diz o poeta brasileiro que na costura de Bethânia encontra a colega portuguesa e as cirandas populares. Em águas profundas e algumas vezes escuras Bethânia tem espaço para uma criação coletiva dos Titãs e para As praias desertas de Jobim; cabem rápidas inserções pela obra de Caymmi e composição do sobrinho Jota Velloso; tem espaço para o irmão Caetano e para Chico César; para um canto de Toquinho e Vinicius e para Villa Lobos.

A participação da especial percussão de Naná Vasconcellos ajuda a costurar as idéias de Bethânia em informações que, a princípio, podem parecer distantes. Mas que, nas mãos da artista, se tornam um trabalho bem fechado e coerente.

Já em Pirata Bethânia se banha nas lembranças da infância em Santo Amaro. As águas doces dos rios que banham o recôncavo baiano trazem a menina encantada e deslumbrada. Desde a alegre arte do encarte, lúdica e colorida, personagens da infância de Bethânia dançam e prestam suas oferendas aos deuses da água. "Eu sou memória das águas", canta em composição do conterrâneo Roberto Mendes e Jorge Portugal.

De sua cidade traz também o irmão Caetano em Os argonautas e Onde eu nasci passa um rio, duas composições da década de 60. Das memórias de sua infância resgata o rico cancioneiro brasileiro com peças do folclore e cantigas populares, um domínio público que faz parte da formação cultural e da criação de sua gente.

Quem não nasceu perto do mar tem o leito dos rios como referência das águas. Assim trechos da obra do mineiro Guimarães Rosa pontuam Pirata como a parceria de Ana Carolina e Jorge Vercilo. Na letra a compositora confessa e entrega: "Eu que não sei quase nada do mar/Descobri que não sei nada de mim". A música foi a primeira escolhida a freqüentar as rádios.

A essencial parceria com Jaime Alem, seu maestro há mais de 20 anos, é cada vez mais rica para a obra de Bethânia. A cantora encontra no músico a tradução exata de suas idéias musicais. Jaime traz a viola do interior do Brasil e encontra o violão popular com bom gosto único e arranjos grandiosos em sua simplicidade.

Comemorando seus 60 anos a artista tem uma oportunidade rara de ter em catálogo toda sua obra. Acompanhar a evolução de Bethânia é um saudável exercício. No final a conclusão é que o diamante está cada vez mais lapidado e, com a maturidade, a artista atinge um nível de riqueza poucas vezes visto na cultura popular. Mas é muito cedo para se falar em auge, já que mais do que nunca Bethânia está em franco processo de criação. Sua obra não se acomoda e gera novas águas a cada temporada. Celebrar sua nova produção não é surpresa, mas um prazer constante e sublime.

(© Ziriguidum)


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