SÃO PAULO - Poucos compositores
brasileiros conseguem atingir o equilíbrio estético
entre as tradições das culturas populares e o extenso
universo eletrônico pop. Alceu de Paiva Valença, de São
Bento do Una (PE), conseguiu. E hoje, depois de 36 anos
de carreira, pode falar como poucos sobre o universo da
indústria cultural e das manifestações populares
pernambucanas.
Alceu estará no Rio de Janeiro, dia 11, e em São Paulo,
dia 15, juntamente com dezenas de artistas pernambucanos
para o espetáculo de lançamento do Carnaval de Recife,
em uma iniciativa da prefeitura do capital pernambucana.
Muitos ritmos serão lembrados e revisitados no
repertório que traz do frevo ao maracatu. Além dele, o
evento terá intérpretes como Lirinha, Lenine, Silvério
Pessoa. Alceu acabou de gravar também um DVD de um show
só de frevos realizado na praça do Marco Zero, em
Recife, com 140 mil pessoas fantasiadas, que será
lançado em dezembro.
O pré-carnaval e o lançamento do DVD reafirmam em uma só
voz a necessidade da preservação das culturas populares
brasileiras. “A cultura popular aqui ainda resiste
dentro das pessoas, na alma, no coração. O verdadeiro
que pulsa dentro de cada um. Agora, as coisas estão
aparecendo depois da internet. É muito pouco o apoio
para a cultura popular. Então o processo é natural, é do
ser humano. As novas tecnologias apenas ajudaram a
libertar isso”, afirmou esse “ateu comovido à procura de
fé”.
Em entrevista exclusiva à Carta Maior, Alceu Valença
falou do espetáculo da próxima semana e de projetos
futuros, da responsabilidade do poder público em definir
políticas culturais para as tradições regionais e do
vício antropofágico brasileiro.
Carta Maior – Parece que as culturas populares
estão em ebulição nos últimos tempos. É alguma
tendência?
Alceu Valença – Não é tendência. Um país como o
Brasil, com toda essa diversidade, tem tradições muito
fortes. Um país que perde sua cultura popular se acaba.
Existe em quase todos os lugares a desconstrução de suas
raízes. E isso é claro resultado da hegemonia da
indústria cultural norte-americana. Ligamos a televisão
e só tem coisas de fora. A cultura popular aqui ainda
resiste dentro das pessoas, na alma, no coração. O
verdadeiro que pulsa dentro de cada um. Agora, as coisas
estão aparecendo depois da internet. É muito pouco o
apoio para a cultura popular. Então o processo é
natural, é do ser humano. As novas tecnologias apenas
ajudaram a libertar isso. Mas eu procuro um equilíbrio
nisso. Eu não digo que precisamos nos fechar para o que
vem de fora. Só que não podemos perder nossas
referências. Cadê os seguidores do Cartola e do Nelson
Cavaquinho? Eles estão se perdendo. Precisamos regar as
fontes dos mestres populares.
CM – Mas de quem seria a responsabilidade, então,
de fazer esse resgate de referências?
AV – Dentro de um mundo globalizado, cabe ao
poder público mostrar as referências de tradição e
identidade para seu povo. Atrás da culinária francesa,
existe uma tradição. Assim como no tango argentino, o
fado português, o rock norte-americano. E parece que o
Brasil nega sua tradição como se fosse um pecado.
CM – Em uma entrevista, certa vez, o sr.
afirmou que “de tanta antropofagia, o brasileiro acaba
perdendo as referências”. Há um exagero antropofágico no
Brasil?
AV – Perfeitamente. Colocam isso como uma pedra
filosofal. Antropofagia sempre existiu. Isso não é uma
tradição brasileira. Agora, a partir do momento que você
começa a perder toda a sua referência, não existe
identidade. O mundo não tem mais barreiras. Se a cultura
regional e popular desaparecer, não há mais sentido em
existir essas divisões entre países. Todos serão iguais.
É sobre identidade que estamos falando. Não estou
macaqueando os norte-americanos. Tenho um respeito
profundo pelo rock, pelo blues e pelo jazz. Mas eu vejo
que eles têm respeito por isso. Aqui as pessoas se
justificam: eu faço uma mistura disso com aquilo. Que
coisa babaca. Isso é uma bobagem. Não que as tradições
não devam ser trabalhadas, mexidas e evoluídas. Mas com
a velocidade que a indústria cultural massacra as
coisas, não chegaremos muito longe. Você liga a TV a
cabo e só vê coisas norte-americanas. E quando não é,
não passa de uma imitação barata daquilo.
CM – E de que forma o poder público poderia
interferir nisso?
AV – Sobre tudo precisa rever o que é paradigma
cultural. Eu não falo essas coisas em meu nome. Eu já
estou consagrado, todos os meus shows estão lotados. Mas
é responsabilidade minha, também, pensar a cultura
brasileira. Está faltando aparecer o artista brasileiro.
Eu nunca tive tanto público quanto agora. Isso é sinal
de que está faltando.
CM – Mas novas expressões boas existem, só que
não aparecem...
AV – É claro. Isso é o resultado de uma indústria
cultural falida. Tem uma porção de gente fazendo música
contemporânea brasileira, fundada no samba, no maracatu,
no forró. Mas não é de bom grado de quem detém a
indústria, de quem detém os meios de comunicação. Agora,
quando o governo tenta intervir para melhorar as coisas,
chegam esses colunistas dizendo que é stalinismo. Não
passam de um bando de babacas (risos).
CM – E qual avaliação o sr. faz do Gilberto
Gil no Ministério da Cultura?
AV – Os Pontos de Cultura são projetos
excelentes, que valorizam as tradições populares e
regionais. Agora todo mundo sabe que a verba do
Ministério é pífia, e o Gil pouco pode fazer com isso.
Mas ao menos fez. Agora, cabe que todo mundo coloque em
discussão a comunicação. Tem que ter responsabilidade,
tem que divulgar a cultura nacional. É difícil. Mas tem
algumas coisas que podem ser feitas. Há de haver algum
acordo com os meios para divulgar a cultura brasileira.
A proposta de cotas em rádios e na televisão seria um
grande avanço. Hoje em dia, as gravadoras não têm nem
mais dinheiro para fazer clipes. A indústria cultural
está à beira da falência. Há um buraco na programação,
que está sendo explorado pelo que vem de fora. O
jabaculê sempre existiu, e não se faz nada. E a
pirataria corre solta e ninguém faz nada.
CM – No dia 11, no Rio de Janeiro, e dia 15,
em São Paulo, o sr. vai participar de um espetáculo de
lançamento do Carnaval de Recife. Como será a composição
do espetáculo?
AV – O Carnaval de Pernambuco é sem dúvida uma
coisa maravilhosa, com toda a diversidade de tradições e
culturas. E a prefeitura do Recife está fazendo esse
projeto de divulgação do carnaval. Vão participar eu,
Silvério Pessoa, Lenine, Lirinha, Elba Ramalho,
Orquestra do Maestro Spok, Maracatu Nação Estrela
Brilhante, Lula Queiroga, entre outros tantos. Será um
show dividido pelos intérpretes e em alguns momentos
estaremos todos reunidos no palco. No Rio, vai ser no
Circo Voador e, em São Paulo, no Citibank Hall. Ainda
não sabemos se iremos levar isso para mais lugares.
CM – O que o sr. está desenvolvendo trabalho
novo?
AV – O DVD é a grande novidade: Alceu Valença
Marco Zero. Foi o show de maior público até hoje no
Recife. 140 mil pessoas fantasiadas. E o show foi lindo,
com participação do Silvério Pessoa, Daúde e Paula Lima,
além da banda Spok. Tudo isso vai ser lançado em
dezembro nas lojas.
CM – E o filme “Cordel Virtual”, em que pé que
está?
AV – Está na agenda do dia. Hoje mesmo estava
cuidando do roteiro. Já conseguimos captar uma parte dos
recursos. Mas ainda estamos meio sem perspectivas de
quando conseguiremos toda a verba para começar a gravar.