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Antropofagia em demasia acaba com tradições populares

10/11/2006

 

Poucos compositores brasileiros atingem o equilíbrio estético entre as tradições das culturas populares e o extenso universo eletrônico pop. Alceu Valença conseguiu. Em entrevista exclusiva, Alceu fala do espetáculo da próxima semana e de projetos futuros, da responsabilidade do poder público em definir políticas culturais para as tradições regionais e do vício antropofágico brasileiro.

SÃO PAULO - Poucos compositores brasileiros conseguem atingir o equilíbrio estético entre as tradições das culturas populares e o extenso universo eletrônico pop. Alceu de Paiva Valença, de São Bento do Una (PE), conseguiu. E hoje, depois de 36 anos de carreira, pode falar como poucos sobre o universo da indústria cultural e das manifestações populares pernambucanas.

Alceu estará no Rio de Janeiro, dia 11, e em São Paulo, dia 15, juntamente com dezenas de artistas pernambucanos para o espetáculo de lançamento do Carnaval de Recife, em uma iniciativa da prefeitura do capital pernambucana. Muitos ritmos serão lembrados e revisitados no repertório que traz do frevo ao maracatu. Além dele, o evento terá intérpretes como Lirinha, Lenine, Silvério Pessoa. Alceu acabou de gravar também um DVD de um show só de frevos realizado na praça do Marco Zero, em Recife, com 140 mil pessoas fantasiadas, que será lançado em dezembro.

O pré-carnaval e o lançamento do DVD reafirmam em uma só voz a necessidade da preservação das culturas populares brasileiras. “A cultura popular aqui ainda resiste dentro das pessoas, na alma, no coração. O verdadeiro que pulsa dentro de cada um. Agora, as coisas estão aparecendo depois da internet. É muito pouco o apoio para a cultura popular. Então o processo é natural, é do ser humano. As novas tecnologias apenas ajudaram a libertar isso”, afirmou esse “ateu comovido à procura de fé”.

Em entrevista exclusiva à Carta Maior, Alceu Valença falou do espetáculo da próxima semana e de projetos futuros, da responsabilidade do poder público em definir políticas culturais para as tradições regionais e do vício antropofágico brasileiro.

Carta Maior – Parece que as culturas populares estão em ebulição nos últimos tempos. É alguma tendência?
Alceu Valença – Não é tendência. Um país como o Brasil, com toda essa diversidade, tem tradições muito fortes. Um país que perde sua cultura popular se acaba. Existe em quase todos os lugares a desconstrução de suas raízes. E isso é claro resultado da hegemonia da indústria cultural norte-americana. Ligamos a televisão e só tem coisas de fora. A cultura popular aqui ainda resiste dentro das pessoas, na alma, no coração. O verdadeiro que pulsa dentro de cada um. Agora, as coisas estão aparecendo depois da internet. É muito pouco o apoio para a cultura popular. Então o processo é natural, é do ser humano. As novas tecnologias apenas ajudaram a libertar isso. Mas eu procuro um equilíbrio nisso. Eu não digo que precisamos nos fechar para o que vem de fora. Só que não podemos perder nossas referências. Cadê os seguidores do Cartola e do Nelson Cavaquinho? Eles estão se perdendo. Precisamos regar as fontes dos mestres populares.

CM – Mas de quem seria a responsabilidade, então, de fazer esse resgate de referências?

AV – Dentro de um mundo globalizado, cabe ao poder público mostrar as referências de tradição e identidade para seu povo. Atrás da culinária francesa, existe uma tradição. Assim como no tango argentino, o fado português, o rock norte-americano. E parece que o Brasil nega sua tradição como se fosse um pecado.

CM – Em uma entrevista, certa vez, o sr. afirmou que “de tanta antropofagia, o brasileiro acaba perdendo as referências”. Há um exagero antropofágico no Brasil?
AV – Perfeitamente. Colocam isso como uma pedra filosofal. Antropofagia sempre existiu. Isso não é uma tradição brasileira. Agora, a partir do momento que você começa a perder toda a sua referência, não existe identidade. O mundo não tem mais barreiras. Se a cultura regional e popular desaparecer, não há mais sentido em existir essas divisões entre países. Todos serão iguais. É sobre identidade que estamos falando. Não estou macaqueando os norte-americanos. Tenho um respeito profundo pelo rock, pelo blues e pelo jazz. Mas eu vejo que eles têm respeito por isso. Aqui as pessoas se justificam: eu faço uma mistura disso com aquilo. Que coisa babaca. Isso é uma bobagem. Não que as tradições não devam ser trabalhadas, mexidas e evoluídas. Mas com a velocidade que a indústria cultural massacra as coisas, não chegaremos muito longe. Você liga a TV a cabo e só vê coisas norte-americanas. E quando não é, não passa de uma imitação barata daquilo.

CM – E de que forma o poder público poderia interferir nisso?
AV – Sobre tudo precisa rever o que é paradigma cultural. Eu não falo essas coisas em meu nome. Eu já estou consagrado, todos os meus shows estão lotados. Mas é responsabilidade minha, também, pensar a cultura brasileira. Está faltando aparecer o artista brasileiro. Eu nunca tive tanto público quanto agora. Isso é sinal de que está faltando.

CM – Mas novas expressões boas existem, só que não aparecem...
AV – É claro. Isso é o resultado de uma indústria cultural falida. Tem uma porção de gente fazendo música contemporânea brasileira, fundada no samba, no maracatu, no forró. Mas não é de bom grado de quem detém a indústria, de quem detém os meios de comunicação. Agora, quando o governo tenta intervir para melhorar as coisas, chegam esses colunistas dizendo que é stalinismo. Não passam de um bando de babacas (risos).

CM – E qual avaliação o sr. faz do Gilberto Gil no Ministério da Cultura?
AV – Os Pontos de Cultura são projetos excelentes, que valorizam as tradições populares e regionais. Agora todo mundo sabe que a verba do Ministério é pífia, e o Gil pouco pode fazer com isso. Mas ao menos fez. Agora, cabe que todo mundo coloque em discussão a comunicação. Tem que ter responsabilidade, tem que divulgar a cultura nacional. É difícil. Mas tem algumas coisas que podem ser feitas. Há de haver algum acordo com os meios para divulgar a cultura brasileira. A proposta de cotas em rádios e na televisão seria um grande avanço. Hoje em dia, as gravadoras não têm nem mais dinheiro para fazer clipes. A indústria cultural está à beira da falência. Há um buraco na programação, que está sendo explorado pelo que vem de fora. O jabaculê sempre existiu, e não se faz nada. E a pirataria corre solta e ninguém faz nada.

CM – No dia 11, no Rio de Janeiro, e dia 15, em São Paulo, o sr. vai participar de um espetáculo de lançamento do Carnaval de Recife. Como será a composição do espetáculo?
AV – O Carnaval de Pernambuco é sem dúvida uma coisa maravilhosa, com toda a diversidade de tradições e culturas. E a prefeitura do Recife está fazendo esse projeto de divulgação do carnaval. Vão participar eu, Silvério Pessoa, Lenine, Lirinha, Elba Ramalho, Orquestra do Maestro Spok, Maracatu Nação Estrela Brilhante, Lula Queiroga, entre outros tantos. Será um show dividido pelos intérpretes e em alguns momentos estaremos todos reunidos no palco. No Rio, vai ser no Circo Voador e, em São Paulo, no Citibank Hall. Ainda não sabemos se iremos levar isso para mais lugares.

CM – O que o sr. está desenvolvendo trabalho novo?
AV – O DVD é a grande novidade: Alceu Valença Marco Zero. Foi o show de maior público até hoje no Recife. 140 mil pessoas fantasiadas. E o show foi lindo, com participação do Silvério Pessoa, Daúde e Paula Lima, além da banda Spok. Tudo isso vai ser lançado em dezembro nas lojas.

CM – E o filme “Cordel Virtual”, em que pé que está?

AV – Está na agenda do dia. Hoje mesmo estava cuidando do roteiro. Já conseguimos captar uma parte dos recursos. Mas ainda estamos meio sem perspectivas de quando conseguiremos toda a verba para começar a gravar.

(© Carta Maior)


Vídeo:

Veja Alceu Valença cantando, ao vivo, Anunciação:

 


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