Nele, Lampião volta do inferno à Terra
"Ninguém me agüenta mais", anuncia o cantor e compositor Alceu Valença, 60, do alto de sua cobertura no Leblon, zona sul do Rio de Janeiro.
Não é caso para os
bombeiros nem para a psicanálise - que ele
abandonou há algum tempo, argumentando que
considerava mais proveitoso "segurar" a própria
loucura.
Ocorre que Alceu aporrinha familiares, amigos e
colegas de trabalho há cinco anos com a idéia de
um filme -o "Cordel Virtual" -, que, promete,
agora sai. Uma última versão do roteiro _sempre
reescrito_ ficou pronta há poucos meses, uma
produtora já se ocupa da captação de recursos,
ele tem tido reuniões com grandes distribuidoras
e deve começar a rodar no ano que vem a fita que
chega às telas, ele diz, em 2008.
Alceu explica que nem sempre pode contar todos
os detalhes e histórias de seu filme em reuniões
mais burocráticas com produtores e
distribuidores. "Às vezes não tem muito tempo
para contar. Porque eu sei o filme todo,
decorado, desde o início. Quer que eu conte?",
pergunta e, ato contínuo, começa a recitar.
Sim, porque se trata de uma "fábula" musical, em
versos, nordestina-contemporânea sobre a volta
de Lampião do inferno à terra, em companhia de
Maria Bonita (que depois vira onça) e de posse
de uma luneta que permite enxergar o passado, o
presente e o futuro.
Mas há mais na história cinematográfica de
Alceu, que nasceu como projeto de autobiografia
formal e prosaica, a partir da infância em São
Bento do Una (PE). À medida que escrevia, a
narrativa passou a sair em versos, e depois em
canções, tudo sempre de maneira "muito natural",
explica.
Cangaço em casa
Um dos "culpados" pela idéia fixa de
Alceu --e pela guinada de biografia para
roteiro-- é o cineasta Walter Carvalho, afirma o
próprio cantor. Com algumas páginas escritas à
mão no bolso, o compositor encontrou Carvalho
num show no Rio e lhe mostrou o que vinha
produzindo até então.
"'Isso é filme, é cinema', ele falou para mim",
conta Alceu. "Vamos filmar isso?", incitou em
seguida Carvalho, que acabou não participando do
projeto ora em curso.
Há palhaços, policiais e políticos na versão que
ganhou forma de roteiro. Na sala de seu
apartamento, Alceu incorpora cada um dos
personagens, com voz ora grave --nesses
momentos, lembra Luiz Gonzaga--, ora estridente
e metálica.
Usa uma bancada como púlpito e encena um debate
entre vereadores em São Bento do Una, parte do
roteiro. Traços populistas de um, autoritários
de outro, fazem lembrar algo de personagens de
Glauber Rocha.
Faz sentido? "Acho que não. Claro que alguma
coisa de Glauber estará presente, mas como uma
coisa mínima. Ele viveu na Bahia, onde não tinha
esse negócio. Na fazenda do meu pai tinha a
coisa de os cangaceiros passarem por lá. O
Corisco não foi da Bahia. Chegou à Bahia, mas
não tinha muito baiano na história, não", diz o
pernambucano.
De fato, a nos fiarmos nas recordações de Alceu,
sua ligação com Lampião é familiar.
"Meu pai, em 1938, estudava direito na
Universidade Federal de Pernambuco. Tinha um
colega dele que era telegrafista. Um dia esse
cara chega dizendo que tinha recebido uma
notícia de que Lampião havia morrido", conta.
"Alugaram uma caminhonete. Atravessaram Alagoas
e chegaram lá. Papai conta que encontraram os
corpos já decapitados, em estado de putrefação.
Com alguns objetos jogados no que ele chamava de
'o campo da batalha'."
"Aí papai e os amigos dele cortaram umas varas e
deram sepultura aos mortos. Mas trouxe um
chapéu, de um dos do bando, que foi guardado na
minha casa."
Também a relação com o cinema é antiga para
Alceu. "Os filmes de Godard e o neo-realismo
italiano, essas coisas eu via em Recife", diz.
"Inclusive falavam que eu era parecido com o
Jean-Paul Belmondo. Arranjei muitas namoradas
por causa dele. Me chamavam de Jean-Paul [ri].
Era ótimo."
Após começar a escrever o filme, Alceu diz que
passou a estudar cinema pra valer. Comprou
livros sobre técnicas de roteiro. Quer que
"Cordel Virtual" seja uma obra sua atrás e
diante das câmeras.
"Teve já coisa de quererem botar outra pessoa
para dirigir comigo. Eu disse que não. Vou
dirigir e vou atuar. Conheço a genealogia desses
personagens. Eu sei fazer todos. Quer que eu
diga pra você?", pergunta.
Resta agora, aos investidores, acalmarem Alceu.
E a família - e os amigos - do cantor.