Asas do frevo reúne maiores sucessos do compositor sendo
interpretados por nomes como Maria Bethânia, Chico César, Claudionor
Germano, Alceu Valença e Daniela Mercury
JOSÉ TELES
Em 1966, um fusquinha, objeto de desejo de todo brasileiro,
custava R$ 7 milhões. Uma fortuna. Era de R$ 5 milhões o prêmio para o
primeiro lugar no concurso Uma canção para o Recife, instituído,
naquele ano, pela prefeitura. Não é de admirar, portanto, que 400
músicas tenham sido inscritas no certame. Praticamente todos os grandes
compositores da época concorreram, inclusive Capiba.
O resultado final foi uma surpresa. A composição vencedora foi
Recife, manhã de sol, de um autor desconhecido, de apenas 21 anos,
chamado José Michiles da Silva. Ele só não era um estreante, porque,
dois anos antes, tivera uma composição (o calipso Não quero que tu
chores) como lado B de um compacto do grupo, da Jovem Guarda, Os
Golden Boys (o lado A trazia Quero afagar tuas mãos, versão de
I want to hold your hands, dos Beatles).
Quatro décadas depois, J.Michiles é um compositor consagrado:
composições suas gravadas por Alceu Valença tornaram-se clássicos do
repertório carnavalesco, não apenas pernambucano, mas brasileiro.
Roda e avisa (em parceria com Edson Rodrigues), Diabo louro,
Vampira, Bom demais, Me segura senão eu caio – a
lista é extensa, e a parte mais expressiva dela foi reunida num disco
batizado de Asas do frevo, o carnaval de J.Michiles.
O projeto nem foi concebido com pensamento na data redonda, a idéia
era mais colocar lado a lado “os filhos” espalhados por discos do citado
Alceu Valença, Elba Ramalho, Claudionor Germano, Almir Rouche, André
Rio.
“Era um trabalho que vinha amadurecendo há bastante tempo, levei dois
anos para concluir. Foi trabalho mesmo, principalmente por querer um
disco bonito, bem realizado, afinal não seria apenas um CD, mas o CD da
minha vida, da minha obra”, diz o compositor.
Para chegar a este CD, J.Michiles primeiramente gravou as bases e a
voz-guia para enviar para os artistas convidados. Naturalmente de muitos
ele é amigo. A tarefa árdua foi com os não-pernambucanos, ou os que
vivem há anos fora do estado.
“Esperava que a acolhida destes artistas fosse boa, mas não tanto
como aconteceu. Chico César, depois que recebeu uma composição gravada
por mim, como voz-guia, me ligou de volta e confessou ter ficado honrado
em participar do projeto. A empresária de Maria Bethânia disse que ela
ficou emocionada com a música que mandei, Recife, um dia de sol”,
conta J.Michiles.
O título Asas do frevo leva a Asas da América, projeto
renovador do frevo, empreendido no começo dos anos 80 pelo compositor
caruaruense Carlos Fernando, que também congregava uma ecumênica equipe
formada por alguns dos maiores nomes da MPB da época. Asas do frevo
repete o feito, com 20 faixas, e estrelas do porte da citada Maria
Bethânia, Geraldo Azevedo, Daniela Mercury e Chico César. Repete o
feito, mas não a fórmula: a sonoridade aqui é marcada pela produção de
César Michiles (filho de J.Michiles), que já domina suficiente o estúdio
para ter uma assinatura própria como produtor.
(©
JC Online)
Um disco
repleto de momentos antológicos
Um pot-pourri com trechos de algumas composições de Michiles é o
aperitivo para as 19 faixas que compõem seu novo trabalho. Embora
não domine as sutilezas do idioma do frevo, Daniela Mercury,
acostumada a quadradice harmônica do axé, se sai bem em Saudando
o Brasil, com um arranjo temperado com baianidade. Já o
paraibano Chico César, com Naná Vasconcelos, vai de Recife nagô,
um maracatu com uma levada que lembra Refavela, de Gilberto
Gil. Irrompem metais rasgados num dos hinos do Carnaval
pernambucano, Fazendo fumaça, com Fafá de Belém, grande voz,
mas que canta frevo com uma suavidade que não casa com o gênero.
Vampira, com Silvério Pessoa, é interpretado como o frevo pede,
com ímpeto de quem vai fazendo o passo no meio da rua apinhada de
gente, e tem que puxar pelo gogó. É este ímpeto que faz os
pernambucanos imprimirem mais energia nos frevos (ainda uma música
paroquial, cuja linguagem só é falada sem sotaque pelos da terra).
Mais metais em fúria na antológica Roda e avisa, com Elba
Ramalho, cuja “pronúncia” do frevo não erra nos tempos fracos e
fortes. Desnecessário dizer que Queimando a massa é perfeito
com Claudionor Germano, assim como Diabo louro, com Alceu
Valença, melhor tradutor da música de J.Michiles.
Que o frevo
precisa de um pernambucano para ser interpretado sem que nenhuma de
suas particularidades sejam esquecidas, é um fato repetido por todos
os especialistas, e que aqui é ratificado por Louro Santos, em
Babado da morena. Ele é compositor e cantor de brega, mas
cresceu com o frevo, e sabe falar sua linguagem, mesmo não sendo
estrela do Carnaval. É o que falta a Geraldinho Lins, que amacia
Bom demais, um dos mais dos mais “arrastadores” e irresistíveis
frevos de J.Michiles.
E aí nem é questão de potência vocal. Lula Queiroga, que não é
exatamente um Caruso, traz a dose exata de “frevura” a outro
clássico de Michiles, Me segura senão eu caio. O mesmo para
Amelinha com Espelho doido. Completam o repertório Geraldo
Azevedo, com Pernas pra que te quero, Almir Rouche, com
Ponta de pata, Gustavo Travassos, com Folia do galo,
Walmir Chagas e o maracatu Ribombo, e Antonio Nóbrega, com
sonhos de pierrô.
O disco é fechado com a Spok Frevo Orquestra,
Dominguinhos e César Michiles e o único frevo-de-rua do CD,
Capibaribe. O destaque do disco é a quarentona Recife, manhã
de sol, com Maria Bethânia. É certo que o frevo-de-bloco vira
marcha-rancho, porém o que conta mais aqui é a interpretação
pungente e definitiva da primeira-dama da MPB, na mais lírica
composição de J.Michiles. Será um crime se este disco não tocar no
rádio (o CD só chega às lojas na primeira semana de janeiro).
(©
JC Online)