Disco com
faixas inéditas ou pouco conhecidas é, a rigor, o mais interessante da
caixa que marca quatro décadas de carreira do cantor baiano
JOSÉ TELES
Por mais paradoxal que possa parecer, Caetano Veloso é muito mais
conhecido, sobretudo por quem está na faixa dos 30 anos, pelos seus
sucessos radiofônicos, ou pelos eventuais acessos de leonino de pavio
curto. No entanto, poucos artistas da MPB nos últimos 40 anos ostentam
uma obra tão íntegra, complexa e ao mesmo tempo pop, que incursiona por
todos vãos e desvãos da música popular. Do baião à bossa nova, do rock
ao concretismo, dos Beatles ao brega. A Universal começa a empreender
uma revisão da arte do filho mais famoso de Santo Amaro da Purificação
com o projeto 40 anos caetanos, pegando a deixa da data redonda:
em 1966, Caetano Veloso assinava contrato com a CBD, ancestral da atual
Universal.
A primeira leva chegou às lojas com dez CDs originais e mais um de
raridades. Relançamentos oportunos, pois em 2007 completam-se também
quatro décadas da deflagração do movimento tropicalista, aqui
representados pelos discos Caetano Veloso (1967), e Tropicália
ou panis et circenses. Esta fornada inicial da caetanave abrange de
1966, o primeiro álbum, Domingo, dividido com Gal Costa, a ainda
desconhecida e tímida Gracinha, a 1974, com o festivo Temporada de
verão (com Gal, e Gil). É certo que estes discos já tiveram uma
reedição em 2002, na caixa Todo Caetano, também dirigida por
Charles Gavin, o baterista dos Titãs, garimpeiro fonográfico nas horas
vagas.
A rigor, pois, o único disco de interesse aqui seria Caetano raro
e inédito 67- 74, que reúne desde a pedra fundamental da discografia
de Caetano Veloso (lançado em 1965, pela RCA Victor), com Cavaleiro
e Samba em paz, canções que não denunciam o revolucionário
estético que desabrocharia somente dois anos depois. Este CD rastreia a
impressionante mudança do compositor, que salta dos queixumes
esquerdistas típicos da bossa engajada, Samba em paz (O samba vai
crescer/quando o povo perceber/que é dono da jogada), à desconstrução,
com Os Mutantes, do samba tradicional, A voz do morto (Eu sou o
samba/a voz do morto/os pés do torto/o cais do porto/ a voz do louco).
Entre as raridades fora de catálogo, dois fonogramas inéditos, o Hino
do Sport Club Bahia. Com Gilberto Gil ao violão, e a demo original
de Cinema Olympia, feita para a gravação de Gal Costa. Um disco
que merecia uma edição autônoma, pelo preciosos lados Bs, a exemplo de
Charles Anjo 45, com Jorge Ben (sem o Jor) no violão e vocalises,
Ai de mim Copacabana (parceria com Torquato Neto), a antecipação do
tropicalismo por Braguinha, em Yes nós temos banana (do histórico
esporro, em 1968, na platéia que vaia o baiano é Proibido proibir
(complementada pela versão de estúdio com Os Mutantes). Violenta
trombada de frente com “a juventude que queria tomar o poder”. Feito
responsável por uma fratura exposta na caretice, o grande momento de
ruptura do tropicalismo, mais ainda do que Alegra alegria, ou
Domingo no parque.
Esta fase, senão a mais importante, é a mais instigante de Caetano
Veloso, pari pasu com o pop internacional (o pop internacional só se deu
conta disto 30 anos mais tarde, e o reverenciou, este ano em Londres,
com a exposição dedicada à Tropicália no Barbican, em Londres). Embora
estes discos nunca tenham saído de catálogo a reapresentação de todos
eles, por ordem cronológica faz justiça a um artista só comparável aos
Beatles nas guinadas bruscas e certeiras, disco a disco. De uma geração
atada a uma tradição literária na importância que dá às letras das
canções, Caetano Veloso, tal como os Beatles, consegue encaixar a
literatura nas experiências sonoras e harmônicas sem soar forçado.
A influência dos Beatles é palpável no seu Álbum branco
(Caetano Veloso, de 1969), que inaugura uma estética indie (sic) no pop
de 38 anos atrás (o que foi preciso ser reconhecido por gringos feito o
riponga Davendra Banhart, para ser descoberto pela geração nascida nos
anos 80). Gravado durante a estadia forçada de Caetano Veloso em
Salvador, antes do exílio “aconselhado” em Londres, o Álbum branco
remasterizado e remixado ratifica o pioneirismo deste disco (e
destaca a guitarra superior do hoje esquecido Lanny Gordin). Barra 69,
espécie de bootleg oficial do show de despedida de Gil e Caetano no
Teatro Castro Alves, antes da saída do Brasil, agora se tornou um disco
de carreira, e não apenas o registro do pesadelo vivido pelos dois
artistas no regime militar.
A guaribada sonora deu um upgrade em Transa (1972) disco mais
bem resolvido desta fase (e provavelmente o melhor da carreira do
baiano, onde vanguarda e tradição realizam um casamento perfeito), que
teve recuperados também os créditos que o descaso da indústria na época
deixou de lado. Alegria alegria no LP não especificava que os
acompanhamentos não foram apenas dos Beatboys, mas de Os Mutantes e do
RC7 (o grupo de Roberto Carlos), e nem tudo foi arranjado por Rogério
Duprat. Julio Medaglia assina o antológico arranjo de Tropicália,
e Damiano Cozzela o de Anunciação. Transa, por sua vez,
traz o nome de Jards Macalé como diretor musical e guitarrista (e de uma
desconhecida Ângela Rorô como flautista na faixa Nostalgia). A
ausência do seu nome na ficha técnica teria provocado a defecção de
Macalé da horda tropicalista (motivo negado por Caetano Veloso, semana
passada, na coletiva de lançamento desta caixa). De Transa
recuperou-se até a capa-objeto (de Álvaro Guimarães) que tornou badalada
(e imprestável ) a tiragem inicial do LP em 1972. Os discos trazem notas
do próprio Caetano Veloso e textos de Tárik de Souza. As próximas caixas
têm lançamentos programados para o transcorrer de 2007.
(©
JC Online)