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O Conselheiro revive, no vigor de seus manuscritos

27/10/2009

 

 

 

Após estudar textos do líder dos canudenses, pesquisador da PUC-SP contesta a visão sobre ele apresentada em Os Sertões

José Maria Mayrink

A leitura dos sermões de Antônio Conselheiro, o líder de Canudos morto em 1897, quando o arraial de Belo Monte foi arrasado pelas tropas do governo, mostra que ele era um sertanejo letrado e bom conhecedor da doutrina da Igreja Católica no século 19. O pesquisador Pedro Lima Vasconcellos, que em 2004 defendeu na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo a tese de doutorado Terra das Promessas, Jerusalém Maldita, sobre a conotação religiosa da guerra no sertão da Bahia, chega a essa conclusão em seu trabalho de livre-docência, apresentado em junho também na PUC-SP, onde é professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião.

Nesse estudo - intitulado Abrindo as Portas do Céu: Apontamentos para a Salvação, Subscritos por Antônio Vicente Mendes Maciel -, Vasconcellos transcreve e analisa o conteúdo do manuscrito intitulado Apontamentos dos Preceitos da Divina Lei de Nosso Senhor Jesus Christo, para a Salvação dos Homens, datado de 1895, que o pesquisador José Calasans (1915-2001), guardou e doou para a Universidade Federal da Bahia (UFBA), que o conserva em Salvador, à espera de projeto e verbas para sua publicação em livro. Além dos originais, a UFBA tem cópias eletrônicas em CD-ROM, à disposição de estudiosos interessados no assunto. Em 2002, Walnice Nogueira Galvão e Fernando da Rocha Peres publicaram, em Breviário de Antônio Conselheiro, trechos do manuscrito em fac-símile.

Outro manuscrito, de 1897, atribuído ao Conselheiro, ou subscrito por ele ao confiar a redação a copistas, foi editado em 1974 por Ataliba Nogueira, que ao analisar os originais - Tempestades Que se Levantam no Coração de Maria por Ocasião do Mistério da Anunciação - fez uma revisão histórica da Guerra de Canudos. Os dois manuscritos foram encontrados nas ruínas de Belo Monte, após sua destruição. "Antônio Conselheiro infame bandido", anotou um soldado anônimo no verso da folha de abertura do manuscrito de 1895, traduzindo nessas palavras o conceito que se fazia do líder. Esta seria a imagem que Euclides da Cunha pintaria dele em Os Sertões, o mais completo relato - com base na série de reportagens que escreveu para o Estado - sobre a luta das tropas federais contra os canudenses.

Na descrição de Euclides, que se baseou em testemunhos de terceiros, Antônio Conselheiro era um "anacoreta sombrio, cabelos crescidos até aos ombros, barba inculta e longa; face escaveirada; olhar fulgurante; monstruoso, dentro de um hábito azul de brim americano; abordoado ao clássico bastão, em que se apoia o passo tardo dos peregrinos...". Para Pedro Vasconcellos, o caderno de prédicas do Conselheiro "desmente o retrato mais famoso dele, pintado com tintas fortes por Euclides da Cunha, apresentando-o como desequilibrado e ignorante". Segundo Vasconcellos e outros estudiosos, como Fernando Peres (professor emérito da Universidade Federal da Bahia), Vicente Dobroruba (Universidade de Brasília) e Aleilton Fonseca (Universidade Estadual de Feira de Santana), o pregador de Canudos tinha conhecimentos de latim e ensinava uma doutrina coerente, numa linguagem acessível a seus adeptos.

"Se a Igreja censurou o Conselheiro e tentou acabar com Belo Monte, não foi por causa do discurso ortodoxo que fazia, mas por julgar que, como leigo, ele não podia pregar, assumindo uma função reservada aos padres", observa Vasconcellos. O arcebispo da Bahia, que enviou missionários ao sertão na tentativa de barrar o pregador, estava preocupado também em defender a República, que ele combatia, ao insistir que só os monarcas exerciam uma autoridade vinda de Deus. "Viu a República com maus olhos e pregou, coerente, a rebeldia contra as novas leis", registrou Euclides. "O escritor leu o relatório de um missionário que esteve em Canudos e escreveu Os Sertões condicionado pelas teorias sobre psicologia das multidões que, supostamente, explicavam a loucura do Conselheiro", diz o professor da PUC-SP.

Com 807 páginas e dividido em duas partes, o manuscrito de 1895 transcreve de início trechos do Novo Testamento - os quatro Evangelhos, Atos dos Apóstolos e os 12 primeiros capítulos da Carta aos Romanos. Por que o Conselheiro interrompeu a transcrição nesse ponto? Pedro Vasconcellos levanta uma hipótese que escapa a outros estudiosos: como o capítulo 13 da carta de São Paulo prega a obediência às autoridades constituídas, seria difícil para o líder de Canudos aplicar o texto à República, regime que ele não reconhecia. O professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo observa também que o Conselheiro interrompeu a cópia do Novo Testamento e iniciou os Apontamentos..., segunda parte do manuscrito, três dias após ter conversado com frei João Evangelista de Monte Marciano, o missionário que tentou dissolver o arraial.

O caderno Apontamentos... divide-se em quatro seções. Na primeira, o Conselheiro prega sobre os Dez Mandamentos, comentando cada um deles. Na segunda parte, trata de temas variados, como a cruz, a missa, a fé, a confissão e a justiça de Deus. Na terceira, o pregador se debruça sobre episódios da Bíblia, como a criação e o pecado de Adão e Eva, a paciência de Jó, a vocação de Moisés, as dez pragas do Egito, as leis do culto divino e o dilúvio. A quarta seção é uma coletânea de versículos bíblicos e uma última meditação sobre o pecado dos homens.

Vasconcellos supõe que, pelo seu conteúdo religioso, em contraposição às prédicas sobre política no manuscrito de 1897, o manuscrito de 1895 tenha despertado menos interesse nos historiadores de Canudos. Alguns trechos se repetem nos dois manuscritos, mas a pregação sobre a República, o casamento civil, a família imperial e a libertação dos escravos são temas que só aparecem em Tempestades, nos originais, hoje extraviados, que foram editados por Ataliba Nogueira.

Como lembra o professor Aleilton Fonseca, citando Ataliba Nogueira, o manuscrito encontrado em Canudos em 1897 pelo médico João de Sousa Pondé, que participou da luta como cirurgião, foi doado ao escritor baiano Afrânio Peixoto, que o repassou a Euclides da Cunha, quando Os Sertões já estava publicado. "Euclides morreu poucos meses depois e não se sabe se teve tempo de folhear os manuscritos do Conselheiro", diz Pedro Vasconcellos. A leitura dos Apontamentos, segundo ele, reforça a avaliação de Walnice Nogueira Galvão quando ela afirma que "Canudos e os canudenses não entregaram a chave de sua decifração aos métodos utilizados pelo escritor".

(© Estadão)

 


As trilhas de Euclides revisitadas

O fotógrafo Araquém Alcântara prepara livro que registra mudanças na paisagem de Canudos

Antonio Gonçalves Filho

Muitas das grandes ruínas que hoje decoram os desertos e florestas da Terra, diz o jornalista e historiador inglês Ronald Wright, "são monumentos à armadilha do progresso". Olhando a foto acima, de autoria do fotógrafo catarinense Araquém Alcântara, de 57 anos, a frase de Wright torna-se ainda mais assustadora por essa ruína estar bem diante dos nossos olhos, uma lápide da civilização que um dia se chamou nordestina. O sertão não virou mar, mas está em vias de se transformar num imenso deserto em função da dinâmica cultural que tem aproximado cada vez mais a erosão de suas terras à aridez que consome a urbe. Ainda assim, em alguns pontos isolados, a beleza arcaica de um mundo anterior a essa queda pode ser vista, como atestam outras 90 imagens do fotógrafo para o livro de fotografias Sertão Sem Fim, patrocinado pela Qualicorp e que será lançado em dezembro com apoio do Estado.

Decidido a registrar as transformações do cenário onde se deu a tragédia de Canudos, contada por Euclides da Cunha no clássico Os Sertões (1902), cujo ponto de partida está numa série de reportagens escrita para o Estado, Araquém, autor do livro de fotografias sobre natureza best-seller no País, Terra Brasil (Ed. DBA/Melhoramentos, 1997, 80 mil exemplares vendidos), peregrinou por oito Estados brasileiros em busca dos vestígios de um mundo perdido no tempo. Ficou impressionado com o que viu, quase tanto como Euclides, que identificou a origem da tragédia sertaneja na questão da terra - da violência do latifúndio ao forçado êxodo a que estão condenados muitos milhares de brasileiros, isolados pela seca, pela ignorância e pela indiferença da civilização urbana, orgulhosa de seu progresso e esquecida de que as cidades do passado sucumbiram justamente por causa dele, não suportando a carga ambiental.

No sertão, Araquém descobriu que as vestes são uma espécie de segunda pele contra a natureza hostil que expulsa o homem, protegido no gibão de couro de bode curtido e apertado no colete como um enforcado à beira da apoplexia. Guerreiros cansados, envergam suas armaduras não como antigamente, observa o fotógrafo, "mas como uma forma de dizer que essa ritualística tenta preservar uma tradição condenada". Hoje, os vaqueiros usam motocicletas para conduzir o gado. Vilarejos próximos das cidades estão contaminados por signos de consumo, poluindo platibandas com cartazes publicitários. Sucumbiram, enfim, à uniformização cultural imposta pelo progresso, que exige que todos falem a mesma língua e tenham o mesmo comportamento.

"Apesar disso, a religiosidade do sertanejo persiste", observa Araquém. Ele registrou dois penitentes que fazem lembrar a via-crúcis do humilde Zé do Burro em O Pagador de Promessas. Na trama da peça que lhe deu origem e no premiado filme homônimo, Zé do Burro caminha 42 quilômetros com uma cruz nos ombros, do sertão baiano a Salvador, para cumprir uma promessa a Santa Bárbara. Já um dos penitentes de Araquém, Pedro da Cruz, saiu de Caruaru curado de uma trombose. O fotógrafo encontrou-o em Bom Jesus da Lapa, caminhando 10 quilômetros por dia e ajudado por outro peregrino em sua missão de carregar a cruz. Já em Itiúba, na Bahia, conheceu um novo Antônio Conselheiro, Adebaldo de Jesus, que, marcado por uma visão epifânica, saiu pela caatinga pregando o evangelho com um coração eucarístico preso ao peito.

Euclides da Cunha diria que o "misticismo feroz e extravagante" desses seres isolados, que se perdem na turba de "neuróticos vulgares", tomou conta de Pedro e Adebaldo. Araquém discorda. Eles não deslizariam para a demência ou seriam replicantes do "falso apóstolo" Conselheiro, que Euclides chamou de paranoico. Adebaldo saiu do sertão, foi para a cidade, trabalhou num restaurante e retornou à terra. Segundo Araquém, nenhum deles se assemelha aos "gnósticos broncos" descritos pelo autor de Os Sertões. Adebaldo é articulado. Contradiz o perfil que Euclides fez do líder da revolta de Canudos, traçado como o de um emissário das alturas "desequilibrado, retrógrado e rebelde".

Encarregado de apontar o caminho da salvação para os pecadores, como lhe revelou a visão epifânica, o missionário Adebaldo é um dos personagens escolhidos pelo fotógrafo e autor do prefácio de Sertão Sem Fim, Eder Chiodetto, também curador da retrospectiva de Cartier-Bresson em cartaz em São Paulo, para integrar o livro. Chiodetto explica que a estrutura da obra segue o fluxo narrativo de sua viagem imaginária, cujo conhecimento do sertão é intermediado pelo olhar literário de um leitor de Guimarães Rosa e Euclides da Cunha. "Estabeleci essa narrativa onírica partindo justamente da terra, tomada por pedras rochosas e simetricamente dispostas como numa land art, introduzindo depois a figura do cavaleiro, que passa por vários lugares e experiências para formar sua ideia do sertão."

À medida que o livro avança, ele ganha a velocidade de um cavalo em disparada. Araquém observa que essa aceleração corresponde à rápida transformação cultural do sertanejo. "Em Serrita, Pernambuco, fotografei um vaqueiro orgulhoso que chamou os amigos, colocou sua melhor roupa, armou-se de bandeiras e posou como se cumprisse um ritual para não deixar morrer a tradição." Difícil mesmo foi entender a linguagem dos sertanejos isolados em vilarejos como Raso da Catarina, perto de Canudos, um "cipoal de caatingas que se emenda em si mesmo". Ali, a linguagem é a última fronteira de resistência contra a contaminação da urbe. O espírito de Conselheiro ainda ronda por lá.

(© Estadão)


Novas veredas do grande sertão

Luiz Zanin Oricchio

O sertão é o mundo todo. O sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão. A primeira ideia vem de Guimarães Rosa e está no centro do seu extraordinário romance Grande Sertão: Veredas. A segunda é leve modificação de uma prédica de Antonio Conselheiro. O beato de Canudos dizia: "O sertão vai virar praia e a praia vai virar sertão." No filme de Glauber Rocha, praia foi trocada por mar e assim aparece na letra de Sérgio Ricardo para a canção final do clássico Deus e o Diabo na Terra do Sol, que acompanha o vaqueiro Manuel (Geraldo Del Rey) em sua simbólica corrida rumo ao mar.

Guimarães Rosa tinha razão. O sertão está em toda parte. Ou, pelo menos, impregna a fundo o imaginário da cultura brasileira. Não apenas os livros de Euclides da Cunha, Graciliano Ramos e o citado Rosa como também os principais filmes do Cinema Novo e os do período da "retomada do cinema brasileiro", situado entre o início dos anos 1990 e princípio dos 2000. Pois agora ele reaparece - e com todo o vigor - no novíssimo Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo, da dupla Karim Aïnouz e Marcelo Gomes, que tem exibições programadas para a 33ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo nos dias 30 - sexta-feira próxima -, 31, 1º e 2.

Com esse título pouco usual, que lembra uma frase de para-choques de caminhão, Aïnouz e Gomes dão seguimento a essa já longa tradição cinematográfica que encontra no sertão o ambiente privilegiado para determinadas histórias, um elemento tão forte que passa a ser, na prática, um dos personagens, se não o mais importante desses filmes.

Podemos lembrar, por exemplo, de O Cangaceiro, de Lima Barreto, que conta as peripécias de um bando que perambula por um "sertão nordestino" recriado, para efeitos de cinema, no interior de São Paulo, mais precisamente na região de Vargem Grande do Sul. A produção tornou-se carro-chefe da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, recebeu o prêmio de "melhor filme de aventuras" no Festival de Cannes de 1953 e teve carreira internacional. Uma de suas atrizes, Vanja Orico, ganhou fama internacional cantando Muié Rendeira e Sodade, Meu Bem Sodade. A tal ponto que participa, cantando, de Mulheres e Luzes, primeiro longa de Federico Fellini, feito em parceria com Alberto Lattuada. O premiado trabalho de Lima Barreto inaugurou o chamado "ciclo do cangaço", com filmes de qualidade variável e bom apelo popular, contando histórias de violência e romance de cangaceiros - sempre situadas no grande sertão.

Se o ciclo do cangaço tomava o sertão como palco das aventuras de amor e violência, o ambicioso Cinema Novo fez dele outra utilização. São os casos das três obras-primas filmadas e lançadas entre os anos 1963-1964 e que se tornaram conhecidas, entre os especialistas, como a "Santíssima Trindade do Cinema Novo": exatamente Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber, Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, e Os Fuzis, de Ruy Guerra.

Aqui, o sertão funciona como locação de valor estratégico. Não por acaso ou por motivos decorativos. Como diz o professor da Universidade de São Paulo e ensaísta Ismail Xavier , "o sertão é um lugar mítico dentro do processo de construção de identidade nacional, com forte presença nas formulações do século 19 e da primeira metade do século 20: a vasta região do semiárido do interior brasileiro (centro-oeste e nordeste) é a região emblemática da seca e da miséria ligada à concentração da propriedade da terra, herança dos tempos coloniais". Portanto, ideal para expor com clareza as contradições sociais enfocadas por um cinema de alta voltagem política.

No caso de Vidas Secas, adaptado do livro homônimo de Graciliano Ramos, a proposta era expressar a prisão sem paredes de uma família de retirantes, castigada pela fome e pelo sol, condenada a repetir a cada vez o ciclo, em aparência interminável, de sua miséria. Já em Os Fuzis, uma multidão famélica é impedida de saquear um armazém protegido pelo Exército, desnudando assim a relação entre o poder do Estado e a defesa da propriedade. E, em Deus e o Diabo, um vaqueiro, essa figura física emblemática do sertão, atravessa as várias etapas da miséria, passando pela conversão religiosa e sua superação, até vislumbrar algo que, se não é ainda uma saída revolucionária, pelo menos lhe aparece como possibilidade de libertar-se do seu destino.

Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo pode ter essa referência ao sertão do Cinema Novo como horizonte longínquo. Mas seu parentesco próximo é com os filmes dos anos 1990 e 2000, que reatualizam a figura do sertão no cinema brasileiro. Por exemplo, O Sertão das Memórias (1996), de José Araújo, Baile Perfumado (1997), de Lírio Ferreira e Paulo Caldas, Central do Brasil (1998), de Walter Salles, Eu Tu Eles (2000), de Andrucha Waddington, reciclam o cenário sertanejo usando-o para fins diferentes daqueles pensados pelos diretores do Cinema Novo. Seja investindo na chave memorialística como O Sertão das Memórias, ou repensando o cangaço em termos pop, reinventando um "sertão líquido", caso de Baile Perfumado, usando a paisagem para enquadrar um divertido ménage à quatre como Eu Tu Eles, ou indo ao interior em busca de alguma pureza ou redenção, como em Central do Brasil, o sertão dos anos 1990 e 2000 parece bem diferente daquela aridez sem clemência buscada pelos cinema-novistas.

Se o sertão dos anos 1960 surgia como palco da exploração econômica, das contradições políticas e relações sociais em transe, nos anos 1990 e 2000 ele passa a cenário de outros temas. Adoça-se, por assim dizer. Livra-se daquela dureza insurgente e romantiza-se, como assinala a pesquisadora Ivana Bentes, autora de vários estudos sobre a questão, entre eles The Sertão and the Favela in Contemporary Brazilian Film (em The New Brazilian Cinema, org. Lúcia Nagib, University of Oxford, 2003). Esse sertão "amigável" (friendly) pode funcionar em tons coloridos, amenos, mostrando um mandacaru romântico ou um pôr do sol na contraluz em tom publicitário.

Não é necessário que seja assim, pois o sertão amolda-se às circunstâncias e desejos do artista. Marcelo Gomes, em Cinema, Aspirinas e Urubus (2005) já havia percebido esse potencial ao ambientar nele a história que envolve um alemão e um brasileiro, na época da 2ª Guerra Mundial, para fazer uma reflexão sobre o Brasil e sua relação com o estrangeiro. Mas também para falar da amizade e da solidariedade como valores fundamentais, mesmo em ambiente árido e em tempo de guerra.

Em Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo, o sertão funciona como moldura para um drama amoroso contado em primeira pessoa. "Zé Renato (Irandhir Santos) é um geólogo, classe média, que viaja pelo sertão e vai se contaminando por aquela paisagem, por aquele universo da estrada. As imagens refletem os sentimentos de Zé Renato, que está passando por um momento de desenlace amoroso, e aquela frase, que está no título, escrita num banheiro e presente em muitos para-choques de caminhões, se cristaliza em seus pensamentos", diz o diretor Marcelo Gomes.

Então, há a "paisagem" interna do personagem, desolada pela separação, que se rebate na paisagem externa sertaneja, atravessada nesse road movie existencial. Mas o filme não se conforma a um personagem ensimesmado. Ao tentar o reencontro consigo, o geólogo Zé Renato não pode deixar de observar o que se passa em volta: "Esse é um mundo em transformação. Um Brasil do interior, mas que vive um processo de modernização desenfreada, esdrúxula, uma fricção entre o rural e o urbano", diz Marcelo Gomes.

Cada época reinventa o seu sertão de acordo com suas possibilidades e necessidades. Ele, o sertão, continua em toda parte, como sempre. É o mundo todo.

(© Estadão)


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