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16/11/2000

Hermeto enfrenta a dor com música

   Que tudo, alegria e tristeza, é música para Hermeto Pascoal todo mundo já sabia, música e vida são indissociáveis. Ou melhor: são uma coisa só. Não está sendo diferente na atual turnê européia do compositor e multiinstrumentista. Ele está vivendo muitas alegrias: a de voltar à Europa, onde sua música é querida e admirada por públicos tão variados quanto ela; a de tocar e viajar com sua banda, da qual faz parte seu filho, o percussionista Fábio da Silva Pascoal, e velhos companheiros como o baixista Itiberê Luiz Zwarg ou o baterista Marcio Bahia; a de compor (pelo menos) uma música por dia e estreá-la na mesma noite, sem ensaio e já perfeita; a de ir a lugares nunca antes visitados, como a belicosa Belfast ou a improvável Trondhein, na Noruega, ou a histórica Nurenberg, na Alemanha.

   Mas em meio a tanta alegria, há uma tristeza. Que basta. Depois de um show apoteótico em Paris, quarta-feira passada, no clube New Morning para cerca de mil franceses (e uns poucos brasileiros) siderados, a trupe pega logo o avião para Copenhagen e, lá, recebe a notícia que a mulher de Hermeto, Ilza, havia morrido no Rio, de câncer. Um telefonema de Copenhagen, enquanto esta reportagem estava sendo escrita, assegurava: a turnê será completada, apesar de toda dor, como uma homenagem de Hermeto à sua mulher. Novamente, ele não vai dissociar a música da vida. E vai atender ao pedido da mulher, de que a banda tocasse em sua homenagem.

   Antes da notícia, em Paris, Hermeto e banda eram só alegria. O show durou cerca de quatro horas, com o baião servindo de base rítmica para as infinitas invenções musicais do líder. No piano elétrico de sonoridade inconfundível, ele abriu a apresentação com "Quiabo" e foi adiante conseguindo o improvável: tocar a música mais complexa que há, com os acordes mais tortos, muitas vezes beirando o atonalismo, e conseguindo como resposta não só a atenção do público como um baile, comportadas francesas invadindo o palco para dançar. E ao som do que se convencionou chamar de música difícil, de vanguarda. E a atenção e o calor se desdobravam mesmo nos momentos mais teoricamente intimistas, quando Hermeto pegou a sanfona de oito baixos e criou uma suíte nordestina a partir de temas seus como "Berrante" ou "Forró do frei". Ou quando solou, na chaleira, sobre a base de baião, um "Round midnight" que fez o público delirar. Coincidentemente, um dos momentos altos do show foi quando Hermeto tocou "Ilza nova", música composta para a mulher e que ele só executa quando o concerto está especial.

   - A base é o baião mas eu carreguei mesmo é no jazz, por causa da casa, um clube de jazz - dizia Hermeto logo após o show, extenuado e feliz. - Em cada lugar mudo, de acordo com a casa e o público. O meu objetivo quando viajo é mostrar que música ao vivo é diferente de música de disco. Viajo com uma seleção brasileira, e sou o técnico. Tenho uma tática para cada jogo, para aproveitar melhor o campo e os jogadores. A seleção de futebol vai mal porque não há mais técnico brasileiro, jogadores brasileiros. Estamos jogando igual a todo mundo.

   A clara metáfora futebolística mostra que tudo que Hermeto vem fazendo pela Europa - onde tem mais público do que no Brasil - é resultado dos treinos e invenções durante a vida toda cultivados no Jabour, bairro da Zona Oeste carioca de onde não sai. O público francês ficou especialmente impressionado com os sons de pássaro tirados do sintetizador de Hermeto, sempre dentro da música, nunca de forma simplesmente circense.

   - Estou fascinado com essa possibilidade de mostrar o som dos pássaros e sei que eles gostam - disse.

   Nos shows pela Europa, Hermeto mistura esse lado experimental, sempre calcado no baião, com músicas obviamente cativantes, como o samba "Viva o Rio de Janeiro", que encerra, em comunhão com o público, o primeiro set. Assim, carregando a alegria de tocar e de achar um público, e a tristeza, Hermeto caminha pela Europa, compondo uma música por dia ("não posso ver papel em branco, que vou logo escrevendo") e sabe-se lá agora com que inspiração. (Hugo Sukman, OG)

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